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XIX
AINDA A GUERRA DOS EMBOABAS

Conquanto já no capítulo VI disséssemos alguma coisa sobre esse período glorioso da história taubateana, todavia para conhecimento dos leitores e sem comentário algum, entendemos dever transcrever ipsis verbis o que diz o historiador Fonseca (88). Ei-la:
“Sendo de ordinário as guerras civis o açoite, com que Deus castiga aos povos, não será muito de estranhar que aos pecados dos moradores das minas, se atribuam as guerras, que entre si tiveram, tão célebres e decantadas, com o apelido do levante dos emboabas contra os paulistas.
Havia dez anos, que se tinha descoberto aqueles tesouros da natureza, e com a fama do ouro tinha concorrido tanto o povo, não só de São Paulo e de todo o Brasil, mas passando além do mar a notícia de tão precioso metal, se abalaram também os europeus com o tal empenho, que nestes breves anos se achavam já naqueles até então incultos sertões, só habitados por feras e gentios, grandes povoações de portugueses.
Não havia entre eles lei, que os obrigasse a viver sujeitos, e só com uma livre escravidão se sujeitavam todos os seus vícios.
Reinava entre tanta abundância de ouro a luxúria, e estava estabelecida com lei inviolável pena de morte a todo aquele, que sem atenção ao mal estado de seu próximo, se atrevesse a violar o tálamo da concumbina, bastando para a execução de tão iníqua lei pequenos indícios; e quando o ofendido se prezava de pio, chegava a condenar a açoites o transgressor, como se fora escravo, tendo a fortuna de escapar alguns por justos respeitos.
Acompanhavam a este mostro os contínuos roubos, o homicídio, as injustiças, e finalmente tudo aquilo, que costumava haver naqueles lugares, onde há falta de homens virtuosos, que com seu exemplo excitem os demais a viverem como cristãos, e temor das justiças, que com castigo terminado pelas leis obriguem, senão a obrar bem, ao menos a fugir do mal.
Não faltavam contudo alguns poderosos que, usurpando a jurisdição, que não havia naqueles lugares, se intrometiam a fazer justiça, prendendo em um círculo, que com um bastão faziam ao redor do delinquente, impondo-lhe logo pena de morte, se saísse dele sem satisfazer a parte que o acusava.
A mesma pena se impunha muitas vezes aos devedores, para que pagassem: e se acaso entre o juiz e o réu havia contas, esquecia-se o juiz de diminuir, querendo receber por em cheio o que lhe pertencia, reservando para a ocasião de melhor comodo a satisfação do que lhe pediam de desconto; e pior era que destes juízes não havia apelação, ainda que havia tanto agravo. Eram os cúmplices mais frequentes destes delitos os paulistas; porque, como viviam abastados de índios que tinham trazidos do sertão, e de grande número de escravos que com o ouro tinham comprado, e se fizeram notavelmente  poderosos, chegando alguns a tanta soberania, que falando com os forasteiros os tratavam por vós, como se fossem escravos, e por isso eram deles maiores as queixas ainda que em grande parte nasciam dos mamelucos, que tinham em casa sem que talvez chegassem a notícia dos anos os seus desmanchos.
Dava ocasião a esses insultos o ordinário modo de viver daqueles tempos, porque como o intento de muitos principalmente europeus, era adquirir naqueles lugares o que haviam de gastar nos povoados, entravam com Jacó peregrinos encostados a um bordão, o qual, ainda que lhes servissem para o alívio do corpo, de nada servia para a reputação da pessoa, a qual só pendia em tempos tão mal ordenador do estrondo das armas e multidão dos pagens.
Divertiam neste descuido algumas, entre elas um religioso Trino, cujo solar era a ilustríssima casa de Águas Belas, e condoídos dos muitos agravos, com que viam ultrajados muitos homens de bem, começaram a persuadir aos sujeitos, que tomavam o ofício de conduzir escravos que dali por diante a entrassem com eles armados: para que indicando o lustrosos das armas o esplendor da pessoa, se evitasse os desatinos, que sem remédios tanto se lamentavam.
Como essa doutrina se fundava na experiência, pois se tinham por grandes, e de respeito, os que tinham quem os fizesse respeitados, começaram dali, por diante a entrar armados, e a fazer-se poderosos adquirindo com os cabedais o respeito, de que tanto necessitavam.
Nesse miserável estado se achavam aquelas povoações, vivendo todos misturado mas desunidos; e querendo Deus castigá-los permitiu que no arraial do Rio das Mortes matasse um paulista a um forasteiro, que vivia de sua pobre agência.
Como os ânimos estavam mal dispostos, e eram contínuos os agravos que recebiam os forasteiros determinaram unidos vingar com o título do morto as próprias injúrias; e ainda que com diligência procuraram ao matador, contudo ele ou estimulado da própria consciência ou porque o reservara o céu para algum destino da Altíssima Providência, se ausentou com tal pressa, que não o puderam alcançar. A este, ao parecer, pequeno acidente se ajuntou outro, com o qual se perturbavam as minas, porque estando no adro da igreja do arraial do Caeté, Jerônimo Pedroso e Júlio César, naturais de São Paulo, sucedeu passar acaso um forasteiro com uma clavina, e querendo eles tomar-lhe, o descompuseram brotando naquelas palavras, que subministra a cólera falta de razão.
Bem sei que o autor da América Portuguesa, informado deste caso, escreveu que eles a queriam furtar; mas eu não me atrevo a por este lábio em sujeitos, a quem o nascimento deu os mais altos brios.
Bem pode ser que na casa de alguns deles faltasse alguma clavina, que fosse em tudo semelhante, e que o forasteiro a comprasse ao mesmo, que a furtou; mas de qualquer sorte que fosse o caso, o certo é,  que estando presente àquele ato Manoel Nunes Viana, forasteiro poderoso, e conhecendo a inocência do injuriado, lhes estranhou o meio, e o modo, com que queria haver a arma.
Como estavam alterados os ânimos, seguiram-se os desafios de parte a parte, ainda que por então com alguns pretextos se tornaram a rejeitar pelos dois agressores.
Mas, como ficou mal apagada aquela faísca, começaram os dois a ajuntar armas e a convidar os parentes, para que com novo desafio satisfizessem a cólera e ao desar, com que no seu parecer tinham ficado.
Fêz-se esta junta com tão pouco segredo que chegou logo a notícia aos forasteiros, que habitavam aos arraiais do Caeté, Sabarabuçú, e Rio das Velhas aos quais julgando a ofensa de Manoel Nunes Viana, a quem tinham por protetor como injúria comum, e supondo que com a sua vida perigava a de todos, caminharam a socorrê-la armados e dispostos para qualquer assalto; e bastando esta determinação, para que os contrários mudassem a opinião, e andassem dizer a Manoel Viana, que queriam viver em paz, e boa correspondência com os forasteiros; contudo, passados poucos dias, novo acidente os tornou a perturbar de sorte que nunca mais se uniram porque matando um mameluco a um forasteiro que vivia com a agência de uma taberna, acoitou na casa de Joseph Prado, paulista de respeito, e poderoso o qual ainda que teve lugar para dar fuga ao matador, não pode sossegar a fúria dos que buscavam enfurecidos, que não atendendo, nem às razões com que os quis persuadir que não estava em sua casa o matador, nem à lembrança da concórdia pactuada naqueles dias, lhes tiraram a vida.
Por este mau sucesso se tornaram a unir os paulistas ajuntando armas, escravos e parentes; e feita uma assembléia pelos fins do mês de novembro de 1708, se espalhou uma voz, a qual afirmava que nesta se tinha determinado passar a ferro em o dia 15 de janeiro do ano seguinte a todos os forasteiros, que vivessem em  qualquer arraial pertencente às minas.
Apenas ocorreu esta voz quando os moradores dos Caetés, Sabarabuçú, e Rio das Velhas, sem mais averiguações da verdade, fundados somente nos desastres passados, se uniram entre si, e buscando a Manoel Nunes Viana, o elegerem por governador de todas as minas, enquanto S. Majestade não mandava sujeito, que exercesse aquele cargo.
Aceitou ele o posto e não tardaram enviados das Minas Gerais, Ouro Preto e Rio das Mortes, os quais saudando-o com o mesmo apelido de governador, lhe pediram socorro, porque naquelas partes se achava com muitas forças o partido dos paulistas e não deixavam de executar as mesmas insolências, com que até então tinham vivido.
Partiu para as Minas Gerais o novo governador, e com a sua chegada pôs em segurança aquele partido: mas tendo notícia que no rio das Mortes eram contínuos os insultos, por viverem naqueles arraiais poderosos paulistas, e que os forasteiros tinham chegado já quase à última miséria, estando reduzidos a um pequeno reduto da Faxina, e terra, que para sua defensa, tinham fabricado, lhes enviou Bento do Amaral Coutinho, natural do Rio de Janeiro, com mais de mil homens valentes e bem armados.
Executou ele a ordem, e bastou chegar ao rio das Mortes para que ficassem livres do perigo aqueles miseráveis. Aquartelou-se no mesmo lugar com que gente que levava, e tendo notícia que pelos lugares vizinhos vagueavam alguns paulistas com ânimo de vingança, fez deligência para colhê-los ainda que sem efeito, porque eles a toda a pressa se retiraram para São Paulo.
Sabendo, porém, que em distância de 5 léguas achava-se um troço de paulistas, destemidos e bem armados mandou contra eles um destacamento de muitos homens à obediência do capitão Tomaz Ribeiro Côrtez, o qual ainda que chegou a vê-los, contudo receando o choque por julgar o partido contrário com força superior ao seu, voltou a dar conta a Bento do Amaral.
Era este sujeito pouco sofrido e cheio de cólera partiu a buscá-los. Divertiam-se eles naquela ocasião com exercício da caça e numa dilatada campina, que cercava um capão ou pequena mata, onde tinham os seus alojamentos, e supondo que o cabo era o mesmo Amaral, e que eles conheciam por bravo e cruel, se retiraram à mata com ânimo de resistir à fúria dos forasteiros, que os buscavam.
Tanto que estes os viram recolhidos, cercaram a mata mas foram recebidos com uma descarga das clavinas, que empregando a sua violência nos sitiadores, mataram logo um valente negro e muitas pessoas principais deixaram feridas.
Como os forasteiros os não podiam ofender e só pretendiam tirar-lhes as armas, e não as vidas,persistiram no cerco uma noite e um dia, despachando logo para o arraial os feridos para serem curados.
No dia seguinte mandaram os cercados um boletim com bandeira branca, pedindo bom quartel e prometendo entregar as armas. Concedeu-lhes, Bento do Amaral, o que pediam, mas, faltando como perfídio e cruel, tanto que os viu sem armas, deu ordens em alta vozes, para que os matassem; e sem mais conselho, acompanhado dos escravos, e ânimos mais vís daquele exército ainda que com pena e repreensão das pessoas de maior suposição e qualidades, que neles se achavam fêz um tal estrago naqueles miseráveis, que deixando o campo coberto de mortos e feridos, foi causa de que ainda hoje se conserva a memória de tanta tirania impondo àquele lugar o infame título de “Capão da Traição”.
Governava nesse tempo a praça do Rio de Janeiro d. Fernando Martins Mascarenhas de Alencastro, o qual tendo notícias dos distúrbios de Minas, determinou ir em pessoa sossegá-los, elegendo para sua guarda quatro companhias pagas.
Chegou ao rio das Mortes, onde se deteve algumas semanas, e como neste tempo se mostrasse inclinado ao partido dos paulistas, tratando mal aos forasteiros, deram logo aviso aos outros arraiais, dizendo que o novo governador carregado de algemas e correntes vinha a castigá-los, provando o seu pensamento com as companhias que para a sua guarda tinha levado.
Alteraram-se tanto com estas vozes os forasteiros, que unidos buscaram a Manoel Nunes Viana, para se oporem à entrada do seu legítimo governador.
Com esta determinação foram esperá-lo ao sítio de Congonhas, distante de Ouro Preto quatro léguas e avistando a casa, onde estava, se-lhe apresentaram em um alto em forma de batalha, pondo a infantaria no centro e a cavalaria nos lados.
Tanto que os viu d. Fernando, despachou um capitão de infantaria com algumas pessoas mais, para que soubesse de Manoel Nunes Viana que capitaneava o exército, qual era o intento àquela ação.
Recebeu Manoel Nunes Viana o enviado, e depois de ter com ele algumas conferências, foi acompanhado de alguns homens do seu partido, falar a d. Fernando; e estendendo-se a prática a uma larga hora, voltou para o posto que tinha deixado. Desta conferência seguiu dar volta ao Rio de Janeiro.
D. Fernando e Manoel Nunes continuando com seus governos criaram os ministros e oficiais, que julgaram necessários para o exército das armas e justiças. Mas julgando os homens de maior capacidade que aquele governo não era seguro, nem podia durar muito, enviaram a frei Miguel Ribeiro, religioso de Nossa Senhora das Mercês, com cartas para Antônio de Albuquerque Coelho, que tinha chegado a Lisboa com o governo do Rio de Janeiro pedindo-lhe que os fosse governar e por em paz. 
Enquanto ele faz essa viagem, demos uma volta a São Paulo para darmos notícia do que lá se obrava.
Escandalizados os paulistas da mortandade que por ordem de Amaral se tinha feito no Capão da Traição, se recolheram a São Paulo com ânimo de se despicarem: e convocados os moradores, lhes propuseram a desgraça sucedida, as fazendas e reputação perdidas; e declarando-lhes juntamente com graves razões a atenção que tinham de se vingarem, lhe pediram ajutório, animando-os a empresa com eficácia que costuma administrar a honra gravemente ofendida.
Foram ouvidos com atenção e em breve tempo alistaram mil e trezentos homens, os quais por comum consentimento elegeram para governar a todo o exército a Amador Bueno da Veiga, dando a outras pessoas de maior suposição os postos inferiores.
Fomentaram a empresa alguns teólogos, dando por justo o título de guerra, e não faltou quem esquecido da paz, que deixou Cristo em patrimônio a sua igreja, do mesmo púlpito os animou à jornada.
Não se obrava isso em São Paulo com tanto segredo, que não chegasse logo ao Rio de Janeiro a notícia dessa desordem, e querendo atalhá-la Antonio de Albuquerque Coelho, que já tinha tomado posse do governo, despachou a toda pressa ao padre Simão de Oliveira, da Companhia de Jesus, para que com a autoridade de religioso, e patrício grave pacificasse os ânimos e desfizesse as tropas que já estivessem alistadas, armando para isso com umas cartas, que dizia ser El-Rei, nas quais se proibia aos paulistas o saírem de São Paulo armados.
Quis também com os raios da censura impedir o caminho e atalhar os danos que se temiam o grande prelado d. Francisco de São Jerônimo, mandando publicar um monitório; pois não era bem que deixasse de concorrer a igreja para a desejada paz.
Mas como todas estas diligências acharam os ânimos tão mal dispostos, só puderam esfriar o fervor de alguns, que mais tementes a Deus, e reverentes ao rei deixaram de seguir as bandeiras dos apaixonados, os quais antes de empreenderem a jornada, imitando os bons católicos, quiseram implorar o favor divino, mandando cantar uma missa, à qual assistiu o novo governador e seus sequazes.
Partiram finalmente em direitura a Taubaté, para se incorporarem com mais algumas tropas, que de outras partes esperavam e caminharam com tanto vagar, que em quase vinte dias só venceram o caminho, que em cinco dias comodamente se pode andar.
Nesta vila se detiveram largo tempo, esperando que se unisse a gente que pouco a pouco ia correndo, e querendo Deus dar-lhes a conhecer o pouco que lhes agradava a jornada, permitiu que se abrisse no convento de São Francisco uma sepultura, na qual se achou um cadáver incorrupto, com postura de quem atira, porque tinha um joelho em terra, o braço esquerdo estendido, e o olho direito aberto. Ao horror se seguiu logo a notícias, de que o sujeito fora de tão má vida, que perdendo o respeito a Deus, e aos ministros, com uma bala ferira o braço de um sacerdote, deixando primeiro ferida uma imagem de Cristo, que ele tinha em mãos.
Mas como este sucesso não abrandasse os ânimos tão bravos, de Taubaté, caminharam para Guaratinguetá gastando nas viagens mais de um mês. Enquanto o exército marchava, não descansava no Rio de Janeiro Antonio de Albuquerque; antes julgando que com a sua presença se aplacariam os ânimos, e desfariam as inimizades, caminhou para as minas, encontrando no caminho o frei Miguel Ribeiro que com as cartas dos moradores o procurava, se alegrou muito, festejando como era em aquela oferta.
Chegou finalmente acompanhado de dois capitães, dois ajudantes e dois soldados do Caeté, onde estavam as pessoas de maior suposição das minas, compondo umas discórdias, que entre Manoel Nunes e os moradores do rio das Velhas se tinham originado. E sendo logo reconhecido por governador, se retirou Manoel Nunes com beneplácito seu para suas fazendas do rio de São Francisco, continuando Antonio de Albuquerque, que com seu governo criou ministros da justiça e oficiais de guerra, confirmando a maior parte dos que tinha criado o seu antecessor; e tanto que fez o que julgou necessário para a paz, e bom governo daqueles povos, caminhou para São Paulo com ânimo de pacificar também os paulistas.
Mas antes de chegar a Guaratinguetá, onde já havia cinco ou seis dias, que se detinha o exército, correu voz que tendo o novo governador visitado as minas e deixado em paz os forasteiro caminhava para São Paulo; e como necessariamente se havia de se encontrar com eles, determinaram recebê-lo cortesmente: e tanto que ouviram apuraram as leis da boa polícia.
Animado com tanta benevolência, tratou da paz: mas eles a não admitiram, persuadindo-se que aquele tratado nascia do medo, que o seu exército tinha causado já nos ânimos dos emboabas.
 Escandalizando Antonio de Albuquerque com a repulsa, lhes disse que fossem; mas que advertissem que eram poucos para o que intentavam.
Não faltava quem diga, que eles o quiserem prender, e que tendo aviso secreto deixara de ir a São Paulo como intentava; mas o fosse esta notícias verdadeira, ou falsa, o certo é que ele por Parati se retirou para o Rio de Janeiro, de onde toda pressa fez aviso pelo caminho novo aos moradores de Minas, que viviam em um total descuido do perigo que começava.
Marchou o exército para o rio das Mortes, que era alvo onde se dirigia a sua primitiva vingança, encontrando no caminho com alguns dos contrários que desciam das Minas a Parati, com as suas fazendas, não só os deixaram ir livres, mas ainda houve tal, que sabendo que um escravo tinha roubado a um destes viandantes, o castigou asperamente , obrigando-o a restituir tudo o que lhe tinha tomado.
Depois de dezesseis dias de marcha chegaram aos Pousos Altos, onde fizeram conselho de guerra; e com o fim a que se restaurasse a reputação perdida, e as fazendas, que nas minas tinham deixado, assentaram não fazer dano a todo o emboaba que livremente rendesse as armas julgando que com uma tão humilde ação se satisfaziam cabalmente tantos agravos.
Chegaram finalmente ao rio das Mortes, os forasteiros avisados por Albuquerque, tinham formado para sua defesa em uma eminência que distaria das casas da povoação um tiro de pedra, um fortim, no qual estavam recolhidos e avistando estes as primeiras fileiras do exército que descia de uma serra saíram a recebê-los com ânimo determinado à paz e à guerra: e como não admitiriam os paulistas as condições da paz, travaram uma brava escaramuça, que apartou a noite, sem mais perdas de parte a parte, do que a de alguns cavalos, ficando os paulistas senhores das casas, e os emboabas recolhidos no seu fortim, o qual cercavam logo os paulistas, continuando por quatro dias e noites as baterias com vários sucessos, e talando os gados, mantimentos, e tudo que podia satisfazer a sua ira e causar dano ao partido contrário.
Cercado o fortim, mandou o governador Amador Bueno guarnecer as casas com alguma gente, e para que melhor pudesse tender às necessidades dos cercados, se retirou a uma atalaia com o resto das tropas.
De noite tentaram os cercados queimar as casas, e não faltaram logo como os emboabas, que, fingindo-se paulistas fugidos do forte, se animassem à empresa, e pegassem o fogo mas com tão mal sucesso que conhecendo os paulistas o engano, lhes tiraram as vidas; e para evitarem novo acidente se conservaram por diante ambos os partidos em vigia.
Ao amanhecer tornaram às armas e mostrou o sucesso que na mesma noite tinham cuidado os paulistas em queimar também as casas do forte; porque de manhã viram uma guarita fabricada por João Falcão em um lugar que descortinava o interior do forte, de onde lhes lançaram tantas flechas acessas sobre as casas, que eram de palha que ateando-se o fogo, foi muito difícil apagá-lo.
Mandou também Ambrósio Caldeira sair ao fortim dezesseis cavalos, os quais encontrando ao sair aos paulistas lhes deram uma valente carga e os obrigaram a buscar as casas junto às quais se travou escaramuça, ainda que com um partido muito desigual; porque os emboabas pelejavam em campo raso, e a peito descoberto com alguns paulistas, que dando a conhecer o seu valor, se deixaram ficar no campo, retirando-se os mais às casas de onde a peito coberto e com pontaria certa danificaram muito aos emboabas.
Assinalou-se nesta ocasião Francisco Bueno, a quem acompanhava seu filho de poucos anos, cujo valor mereceu especial memória, por que ferido com uma bala em um braço respondeu ao pai, que o reprendia de ter saído ao campo, “que para tão generoso sucesso tinha entrado na peleja.”
          Assinalou-se também Luiz Pedroso e outros, e finalmente chegada a noite, e mortes quase todos os emboabas, apartou o escuro a contenda.
Acabado o choque mandaram os paulistas que guarneciam as casas, pedir Bueno, que estava na atalaia, com a maior parte do exército, munições. Mas achando-o os mensageiros com ânimo de levantar o cerco e retirar-se, ou por que o medo incitava àquela resolução ou por que se tinha metido entre eles a discórdia; voltaram as casas, desanimando muito com essa notícia aos que as defendiam.
Não faltaram logo alguns, a quem parecesse bem a resolução, e quisesse seguir o exemplo; mas Luiz Pedroso sentindo o desmaio lhes fez uma prática, dizendo que estando a vitória nas mãos seria covardia deixar o inimigo já prostado e quase rendido; e que ausentando-se os companheiros cabeira maior glória aos poucos que vencessem: Que para eles vencerem não eram necessário mais, pois os tinham até então pelejado, e reduzido o inimigo ao miserável estado em que se achava, e que podendo eles só resistir a tantos, porque não poderiam agora render-se aos poucos que restavam.
E, finalmente, que no caso em que eles também quisessem por nódoa na sua fama deixando covardes a batalha, que ele não o faria, pois lhe seria melhor ficar morto como valente no campo do que aparecer com o desar de fugitivo em São Paulo.
Animados com estas razões investiram ao fortim com tal fúria, que, fazendo muito fogo, e metendo grande espanto, determinaram render-se os cercados. Houve tréguas para se ajustarem as capitulações da entrega, oferecendo os cercados com armas tudo o que se achasse no forte, contentando-se com que lhe permitissem os vencedores as vidas: mas como houvesse alguns paulistas, que, lembrados da mortandade do Capão, e esquecidos do assento, que tinham feito em Pouso Alto, de não fazerem mal aos emboabas, que livremente rendessem as armas, não quisessem aceitar mais condição do que tirarem a todos as vidas, não foi possível ajustar-se nada. Por cartas que lhes lançaram em flechas os paulistas, que estavam nas casas, sabiam os exilados a má vontade, que havia em alguns do arraial inimigo, e ainda assim continuariam a propor algumas condições; mas como uns lhes concedessem as vidas, e outros lhes respondessem com os tiros das escopetas; pediram finalmente que ao menos deixassem sair livres as mulheres e os meninos; mas era tal o orgulho e má vontade dos que já se supunham vitoriosos, que nem isto quiseram admitir.
Passados dois dias, movidos os cercados com a última desesperação, determinavam morrer antes pelejando no campo como valentes, do que perder as vidas como covardes no recinto do forte, e para darem mostras da sua determinação, amanheceu arvorado no terceiro dia um estandarte branco no mais alto da muralha. Persuadiram-se os paulistas que era aquela cor sinal da entrega, e com as salvas de mosquetaria trataram logo de festejá-las; mas os cercados com os seus mosquetes e clarins declararam a intenção que tinham de pelejar; e fazendo primeiro um ensaio dentro do forte, saíram armados de espadas e pistolas, investindo com grande fúria aos paulistas que os receberam metidos nas casas.
Persistiram algum tempo no campo mas como do seu valor não tiravam mais fruto do que perderem, como valentes, as vidas; porque os paulistas com pontaria certa, e sem risco os acabavam, tocavam a recolher sem mais fruto, do que deixarem no campo alguns mortos. Recolhidos continuaram até a noite a peleja com as armas de fogo, tendo até então perdido os emboabas oitenta homens,  e os paulistas somente oito, com não poucos feridos, de que perigavam também alguns. Foi a causa desta notável desigualdade a vigilância que havia da parte dos paulistas, e a destreza com que usavam das escopetas, pois apenas aparecia sobre a muralha alguma cabeça, quando logo com um pelouro a faziam vítima de sua ira; e como obrigavam assim aos sitiados a por somente a boca das suas clavinas sobre o muro, e a disparar sem pontaria, evitavam os danos, que tanto lamentavam os seus contrários. Vendo finalmente os emboabas que sem remédio perdiam as vidas, se resolveram ao último esforço, determinando saírem todos no dia seguinte. Prepararam-se toda a noite e deixando sobre a muralha uma imagem de Santo Antonio, saíram do forte ao amanhecer de um sábado com tal fortuna, que já não acharam, com quem pelejar; porque os paulistas ou discordes entre si, ou temerosos com a notícia de mil e trezentos homens, que do Ouro Preto marchavam a socorrer os sitiados tinham fugido naquela noite sem serem sentidos. Foi voz constante que ao voltarem os emboabas para o forte acharam o Santo Antonio em outro lugar, com uma bala engastada no cordão, e a uma imagem de Nossa Senhora com um milagroso suor, e que agradecidos ao seu benfeitor o levaram em procissão, e o colocaram com grande júbilo no seu antigo lugar. Enquanto, porém se celebrava no forte a não esperada liberdade, caminhavam para São Paulo os desertores com tal pressa, que chegando pouco depois as tropas, que vinham socorrer os sitiados, já não os encontraram, ainda que levados da fúria militar que lhes seguiram por oito dias os alcances. Com este mal sucesso não desanimaram os paulistas, antes como valentes Anteus, cuidaram em alistar soldados e eleger novos cabos: mas estando já em bons termos a empresa, apareceu Antonio Albuquerque com o governador de São Paulo, e apertadas ordens de El Rei, para que fossem os paulistas habitar pacificamente as minas, impondo graves penas aos que primeiros violassem a paz; e entendendo o soberano que ânimos generosos se deixassem vencer com qualquer afago, lhes enviou pelo novo governador um retrato seu, que ainda hoje se conserva na casa da Câmara, para que entendessem que visitando-os daquele modo, já que pessoalmente o não podia fazer, tomara os paulistas debaixo da sua real proteção. Com este singular favor se satisfizeram os paulistas, e esquecidos dos agravos passados depuseram as armas”.
Eis a narração de um escritor português acerca da memorável guerra dos emboabas. Transcrevemo-la toda para que o leitor ajuíze aqueles sucesso, e certifique-se da parte ativa e importante que neles tiveram os antigos taubateanos. A história pátria do Brasil sempre estará ligada como parte integrante este período em que tanto se distinguiram os paulistas e taubateanos.
As famílias que nesses tempos mais figuraram foram os Pires, os Camargos, os Pedrosos, os Magalhães, os Carvalhais, os Cardosos, os Paes Lemes, os Toledos, e os Furtados.

88 –Trata-se do Padre Manoel da Fonsa, autor da célebre biografia: “vida venerável padre Belchior de Pontes”, edição original, Lisboa, pág.202 e seguintes.

A Guerra dos Emboabas, ocorrida entre 1708 e 1709, foi uma luta entre paulistas e não paulistas – os emboabas, pela administração das Minas de ouro. No livro Paulistas e emboabas no coração das minas – Ideias, práticas e imaginário político no século 18, Adriana Romeiro explica que a Guerra dos Emboabas “não chegou a ser a ser uma guerra – não foi nem tão sangrenta nem tão longa”. O conflito terminou com a vitória dos emboabas, que contaram com a ajuda da Coroa, que não era fã dos paulistas e a quem consideravam “pouco fiéis e civilizados para a tarefa de colonizar uma região tão importante”. Documentos oficiais tratam os bandeirantes taubateanos como bárbaros sanguinários, que se apropriaram das Minas do Ouro. Além de apelidar os forasteiros de Emboabas, ainda tentavam expulsar da região quem não fosse da turma. Os emboabas diziam que os bandeirantes moravam junto às matas para “se comunicarem com as feras de quem herdavam os corações”. Com a perda das Minas para os emboabas, uma parte dos bandeirantes taubateanos retornou à Taubaté – onde dedicou-se a atividades agrícolas para consumo próprio e abastecimento das Minas –, e outra aventurou-se pelas regiões de Goiás e de Mato Grosso a procura de novas jazidas. (Fonte: Paulistas e emboabas no coração das minas – Ideias, práticas e imaginário político no século 18, Adriana Romeiro e Revista Almanaque Taubaté 5)