Vale de viajantes – II

 Vale de viajantes – II

Taubaté – Miguelzinho Dutra – Pinacoteca do Estado de SP

Veja a primeira parte desse artigo

com Fabiana Pazzine

Um dos primeiros viajantes a transitarem por Taubaté foi o Padre Manuel Ayres do Cazal que passou pelo Vale do Paraíba no ano de 1817. Em um fragmento de seu relato sobre Taubaté, Cazal confirma a importância geográfica que a cidade possui e sempre tirou proveito desse fator, desde os primórdios de sua história (o que seria constatado por Saint-Hilaire logo em seguida):

 “Taubaté é uma das vilas mais consideráveis e a mais bem situada da província: está 30 léguas no nordeste de S. Paulo, 20 de Mogi das Cruzes, e 12 de Jacareí, uma arredada da margem direita do rio Paraíba, junto a uma ribeira. Além da matriz dedicada a S. Francisco, tem um convento do mesmo santo (sic!), uma ordem terceira, e as capelas de Nossa Senhora do Pilar e do Rosário. Quase todas as casas são de taipa, e poucas de sobrado.” (CAZAL, 1817)

 Com esse fragmento, vemos as primeiras descrições sobre a estrutura física e a localização da Vila. Era uma vila com aspecto singelo, dado o tipo de construção, porém religiosamente ativa.

Pintura de Thomas Ender a partir do Convento de Santa Clara. O centro urbano de Taubaté em sua quase totalidade, em 1822
Pintura de Thomas Ender a partir do Convento de Santa Clara. O centro urbano de Taubaté em sua quase totalidade, em 1822

Anos mais tarde Saint-Hilaire, botânico francês, fez uma breve descrição da  vegetação encontrada na região. A partir de seus relatos pode-se constatar a importância econômica e os costumes da Vila:

[…] A vila de Taubaté é a mais importante de quantas atravessei, desde que entrei na capitania de São Paulo.

Fica situada em terreno plano e tem a forma de um paralelogramo alongado. Consta de cinco ruas longitudinais, todas pouco largas,mas muito limpas e cortadas por várias outras. As casas próximas umas das outras são pequenas, baixas, cobertas de telhas e só têm o rés-do-chão.

Apresenta a maioria a fachada caiada e tem um quintalzinho plantado de bananeiras e cafeeiros.

A igreja paroquial ostenta duas torres, é bem grande e conta cinco altares fora o altar-mor, mas, como as de Guaratinguetá e Pindamonhangaba, não recebe luz pelo lado da nave, sendo por conseguinte muito escura. Além desta igreja existem em Taubaté três outras que,quando muito, merecem o nome de capela.

Ao se chegar do Rio de Janeiro, passa-se diante de um convento, muito grande, pertencente à ordem dos franciscanos. Muito contribui para o embelezamento da cidade. Fica em frente desta e dela separado por grande praça quadrada chamada Campo e coberta de ervas e vassouras.

Como em todas as cidades do interior do Brasil, a maioria das casas fica fechada durante a semana, só sendo habitada nos domingos e dias de festa.

[…]Encontram-se em Taubaté operários de diferentes profissões, várias estalagens, muitas vendas. Entre estas últimas, existem algumas tão mal sortidas que é impossível que o proprietário possa pagar impostos e viver do lucro do que vende. Corre na região que se estes homens de mantêm é pelo ganho auferido dos furtos comprados a escravos.

[…]As terras dos arredores de Taubaté são muito próprias à cultura da cana e do café. Antigamente era a cana o que mais se plantava, mas, depois que o café teve alta considerável, os cultivadores só querem tratar de cafezais.

[…]Tinha grande tentação de ficar na cidade até amanhã; mas uma légua vencida hoje diminuiria a longa caminhada de amanhã; receava aliás, para José, as fadigas da noite.

[…]Estas estalagens do interior não passam de verdadeiros prostíbulos, quer mantidos por mulheres, quer por homens. Neste último caso as rameiras alugam quartos e neles mercadejam os encantos aos viajantes.

Quando não existe nenhuma destas desgraça das no hotel, acha-se o dono muito disposto a dar, a seu respeito, todas as informações desejadas. Tais mulheres, além disto, são muito raramente bonitas, e sempre desprovidas de graças e atrativos.

[…]Entre Lorena e Taubaté é o peixe muito abundante e barato. É o Paraíba que o fornece. Vende-se fresco, mas encontra-se também seco e salgado na maioria das vendas. (SAINT-HILAIRE, 1822, p. 89-90)

 Podemos perceber as primeiras características físicas de Taubaté, além da definição do traçado original da Vila: as cinco ruas, que formam o conhecido “tabuleiro de xadrez”.[1]

Planta de Taubaté feita por Arnaud Julien Pallière, em 1821

Percebe-se a agricultura como base da economia taubateana, pois, segundo o relato, as casas da cidade somente eram habitadas nos finais de semana, ou seja, para os encontros nas missas de domingo. Não era possível ficar na cidade a semana toda, devido ao trabalho que demandava a terra.

            O cenário encontrado pelo viajante coincide com o momento transição entre atividades econômicas, logo, um período de estagnação, apesar de ainda possuir importância remanescente do período aurífero. Após o esgotamento das minas houve uma transferência de capital para fazendas destinadas ao cultivo da cana. Esse cultivo, geralmente, não possuía grande relevância na economia mas, apesar disso, Taubaté possuía grandes fazendas canavieiras, como a Fazenda Pasto Grande.

            Esse período é chamado por alguns historiadores de “pequeno Ciclo da cana-de-açúcar”[2], mas há outros que não usam essa denominação por causa da expressividade do cultivo de subsistência.

Taubaté está em um ponto estratégico, no eixo de circulação entre São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Nos seus primórdios essa posição foi exaustamente aproveitada para a penetração nos Sertões dos Cataguazes[3] e, por isso, muitas cidades foram fundadas a partir de Taubaté (ABREU, 1991, p.19). Da propícia localização geográfica da cidade, nasceu a vantagem que deu a Taubaté maior importância em relação às outras cidades do Vale do Paraíba. A economia da província era dependente dessa região e por esse mesmo motivo surgem as então conhecidas rivalidades entre paulistanos e taubateanos. (CAZAL, 1817)

Saint-Hilaire descreve que os habitantes de Taubaté já faziam o cultivo do café, mesmo em pequena escala, no que o viajante denomina quintalzinho. No período de sua viagem a produção da cana-de-açúcar ainda era a mais importante, porém , identifica-se a decadência dessa cultura, que aos poucos cede espaço para o cultivo do café.

Mais adiante, em seu relato, diz que os “cultivadores só querem tratar de cafezais”, o que confirma que o período era de transição da economia canavieira para a cafeeira. O cultivo da cana não acabou repentinamente, ele foi apenas minguando, cedendo espaço para o café, que mais tarde terá uma fase predominante chamada de ciclo cafeeiro.

Podemos compreender a vida na cidade: um comércio pouco variado, advindo da pobreza de seus habitantes, e muitas estalagens, pela posição favorável de Taubaté, que desde o período dos bandeirantes tinha a necessidade de acomodar os viajantes de passagem. Para a manutenção da circulação desses viajantes entre as regiões de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, apesar da pouca variedade de artigos comerciais, havia numerosos artífices, como ferreiros e tanoeiros, que ofereciam os serviços aos viajantes. O que nos leva a pensar que a vila manteve, por mais de trezentos anos, apenas a função de “alojamento temporário”, pois havia pouco interesse dos viajantes em permanecer na vila e, por isso, era necessária a presença constante dos chamados “operários”. Isso justifica a manutenção da pobreza na cidade[4]. Nesse contexto dá-se a importância do Rio Paraíba na vida dos moradores do Vale: além da água que fornecia, era o rio quem ajudava a complementar a alimentação da população em tempos difíceis, como suplemento para o comércio pouco diversificado.


[1] A organização das ruas de Taubaté, em seu princípio, formava o que os historiadores locais definiram como “TABULEIRO DE XADREZ”. A primeira planta de Taubaté que mostrava essa formação foi feita pelo pintor francês Arnaud Julien Pallière, em 1821, a qual se observa o traçado regular das ruas e o limite da área urbana.

[2] Com o esgotamento das jazidas de Minas Gerais, Taubaté se viu obrigada a entrar em um novo período de economia de subsistência, já que havia perdido a sua função abastecedora das minas. Esse período, que durou cerca de um século, teve a predominância da produção de cana-de-açúcar, motivo pelo qual alguns historiadores preferem chamar esse período de “Pequeno Ciclo da Cana-de-Açúcar”. Em Taubaté algumas fazendas se destacaram no cultivo do produto, tais como a fazenda Paraíso e Pasto Grande, que mais tarde teriam suas estruturas adaptadas em prol do cultivo do café.

[3] Os SERTÕES DOS CATAGUAZES (ou SERTÕES DE TAUBATÉ ou MINAS DE TAUBATÉ) era a região que compreendia todo o sul, grande parte do centro leste de Minas Gerais, atingida através de passagens naturais existentes na serra da Mantiqueira, isto é, as suas gargantas. (Cf. TOLEDO, 1972, P.56)

[4] Sobre a manutenção da pobreza em Taubaté, verificar as obras de Maurício Martins Alves, “Caminhos da pobreza. A manutenção da diferença em Taubaté, 1680-1729” e Maria Cristina Martinez Soto, “Pobreza e conflito: Taubaté 1860 – 1935”.

Veja a terceira parte desse artigo

Veja a quarta parte desse artigo

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Maria Morgado de. Taubaté: de núcleo irradiador de bandeirismo a centro industrial e universitário do Vale do Paraíba. 2ª Ed. Taubaté, São Paulo. 1991

ABREU, Maria Morgado de, ANDRADE, Antônio Carlos de Argôllo. História de Taubaté através de textos. Taubateana nº 17. Taubaté, São Paulo. 1996

ALVES, M. M. Caminhos da pobreza. A manutenção da diferença em Taubaté, 1680-1729. Taubaté: Taubateana, nº18, 1999.

CAZAL, Manuel Ayres de. Corografia brasílica. Rio de Janeiro 1817, Reimpressa na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de SC, em 1918

MEDEIROS LAHUERTA, F. Viajantes e a construção de uma idéia de Brasil no ocaso da colonização (1808-1822).  Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales.  Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2006, vol. X, núm. 218 (64). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-218-64.htm> [ISSN: 1138-9788]

PANDOLFI, Fernanda C.. Imaginário e viajantes no Brasil do século XIX: cultura e cotidiano, tradição e resistência. História., Franca, v. 22, n. 2, 2003. Available from: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742003000200018&lng=en&nrm=iso>. Access on: 21 Sep 2006. doi: 10.1590/S0101-90742003000200018.

SAINT-HILAIRE, Auguste de, 1779-1853. Segunda viagem a São Paulo e quadro histórico da Província de São Paulo / Auguste de Saint-Hilaire ; tradução e in trodução de Afonso de E. Taunay. — Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

TOLEDO, Francisco de Paula. História do Município de Taubaté. 2ª Ed. Taubaté. Taubateana nº 6, 1976

VIOTTI DA COSTA, Emília. Da senzala à colônia. 4ª Ed. – São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1988

ZALUAR, Augusto Emílio. Peregrinação pela Província de São Paulo (1860 1861). Coleção Reconquista do Brasil vol. 23. Livraria Itatiaia Editora do Brasil Ltda. Editora da Universidade de São Paulo

 

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Angelo Rubim é historiador, produtor do Almanaque Urupês.

Fabiana Cabral Pazzine é professora de história. Pesquisadora de História Cultural e Social e colunista neste Almanaque.

almanaqueurupes

8 Comments

  • Belas imagens e textos, parabéns.

    Nota – Taubaté não era pobre, na verdade era mais rica que a média continental. Talvez estejam se referindo ao fato de a pobreza se concentrar no centro da cidade (como a maioria das cidades no mundo no período) e não na área rural. Taubaté possuía grandes fazendas e propriedades nos arredores da cidade. A cidade sempre foi grande produtora de gêneros agrícolas, desde a época das bandeiras e do ouro quando Taubaté passou a ser fornecedor para outras áreas do Brasil e também posteriormente exportar através do porto do Rio de Janeiro e Santos.

    • Seingalt, obrigado pela participação.

      Está correto na sua observação. A pobreza se concentrava no centro urbano e, no caso de Taubaté, a maioria dos viajantes não visitaram as zonas rurais da cidade, ao menos não as áreas das grandes fazendas. A pobreza no campo era bastante diluída e se restringia aos trabalhadores braçais (negros, índios e brancos pobres).
      O que é relatado pelo viajante é uma visão bastante restrita e carregada de preconceitos. Estabelecia comparações o tempo todo, pois, em sua maioria, tinham formação cultural européia, julgada como superior.
      A primeira parte desse artigo (http://www.almanaqueurupes.com.br/testedomau/wordpress//?p=4094) lança luz sobre essa questão.

      No entanto, o período entre o final da exploração do ouro até o café sofreu com a estagnação econômica e redução da oferta de trabalho. Não houve retração aparente, mas levou algum tempo até entrar em nova curva de crescimento.

  • Muito interessante! Parabéns aos historiadores! Quero aprender mais sobre Taubaté através do Almanaque Urupês.

    • Leonídia, é uma satisfação poder contribuir para um melhor entendimento da nossa história. A cidade possui um enorme arquivo de memória que precisa ser revelado. Com a ação dos historiadores e pesquisadores da cidade, pouco a pouco nossa história vai se revelando. E o melhor: não vai se esgotar nunca.
      Tudo de bom!

      • Nossa história é maior que as nossa fronteiras municipais.Haja vista nossos bandeirantes que saíram daqui pelo Brasil afora. Em qual século? Gostaria de saber..! Bem. acho que Vocês podem me ajudar, não sou historiadora ,sou professora de Português .Aguardo alguma orientação.

        • Professora Leonídia,
          As bandeiras saíam de Taubaté desde os primeiros tempos do povoamento, no século XVII e continuaram até o final do século XVIII, avançando cada vez mais no território brasileiro. As primeiras bandeiras, muito provavelmente, saíram daqui já no ano de 1638, quando Jacques Felix ocupou a região.
          Espero ter ajudado.

  • Agradeço pela informação, historiadores do Almanaque Urupês.Ajudou sim.Se tiveram tempo,
    gostaria de saber mais( sei muito pouco) sobre Jacques Felix, sua origem,etc.
    Mas, somente se não estiver atrapalhando as pesquisas ai de vocês.Obrigada

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