TRÊS SAQUINHOS DE AMENDOIM POR UM TOSTÃO E “ZERO” PARA O VENENO LENTO
O dia amanhece chuvoso e triste. Parece que o céu está chorando a saudade dos que partiram para a guerra. Na Rua Barão não se ouve mais o som das botinas batendo no solo em marcha cadenciada. Não temos mais a banda, nem as cornetas pra soprar e a situação impõe pesado ônus para a população. Apesar do racionamento, da falta disto e daquilo, nas escolas as crianças são envolvidas na campanha de arrecadação de ferro velho. Passam a cumprir fielmente a determinação, de corpo e alma, sabendo ou não que o produto de seu esforço será transformado em armas.
Dentro de casa, como não podia deixar de ser, a palavra de ordem era: Economia. Atividade que minha mãe passava a exercer com a austeridade de um verdadeiro ministro. Ela descobriu que cozinhar com serragem de madeira seria bem apropriado para a ocasião. Assim, quando falei que A Companhia Predial tinha serragem aos montes, acabava de assumir a missão de prover a casa. Para o transporte, ela apontou a solução: um carrinho de madeira feito por tio Galdino, a meu pedido, e que vinha usando para a venda de frutas, colhidas na chácara do Dr. Felix. Fui negociar a compra de laranjas com o encarregado e tive permissão para apanhá-las, graciosamente e quantas quisesse. Sempre exaltavam a bondade do homem e isso, para mim, ficou mais que evidente. Era um dos meios que dispunha para conseguir uns trocados e poder assistir as matinês do Cine POLITEAMA, na Duque de Caxias, mais tarde reformado, sem o requinte anterior e batizado como Cine Metrópole, ou as do Cine Palas, na Carneiro de Sousa. Em frente ao cinema, um velhinho de boné, exibindo barba longa e branca, vendia amendoim quentinho e com casca, embalado em folha de jornal. Em pouco tempo seu estranho carrinho de metal, com chaminé soltando fumaça, era esvaziado. Três saquinhos por um tostão. Delícia! Nem tanto para o encarregado da limpeza do cinema. E a gritaria começava quando Buck Jones sacava a arma e começava a derrubar os bandidos. Não errava um e seu revolver disparava muito mais que uma metralhadora. Mas o que me intrigou nos seriados de Flash Gordon foi um aparelho de televisão, cravado na parede de uma caverna e com a imagem de MING, o inimigo de outro planeta, fazendo ameaças. Para mim, aquilo era tão impossível, quanto maravilhoso! Como imaginar que pouco tempo depois, início dos anos 50, reduzido público assistiria, na Capital, com televisores cedidos por Assis Chateaubriand, a inauguração da primeira emissora de televisão do país, a TV Tupi de São Paulo? A que vimos pregada na caverna deixaria, portanto, o campo da ficção.
Depois do rádio, que passou a ser uma boa novidade, o cinema constituía nossa principal diversão, sem contar as visitas dos circos que se instalavam na Praça Santa Teresinha. Nossa mesada passou a ser… ZERO! Afora a situação, pesava ainda nos ombros de papai o pagamento da casa da Rua Barão. Então, algumas vezes, para garantir o ingresso no Cine Palas, lançávamos mão dos mais “sofisticados” procedimentos. Passar pelo porteiro (Caetano), praticamente impossível! O homem, além de enfezado, tinha quase dois metros de altura. E, naquela noite, seria exibido o filme “Veneno Lento”, anunciado com grande destaque nos cartazes que só o “mudinho”, funcionário da empresa, sabia pintar. Estava lá: proibido para menores de 18 anos. Quer atração melhor para a garotada? Ah, não! Proibido?! Temos que assistir essa coisa de qualquer jeito! Assim, quando terminou a primeira sessão e as portas laterais se abriram para a saída do público, entramos rapidamente e fomos direto para o banheiro. Éramos quatro: Aloísio (o pintado), Cid, Newton e eu, o menor de todos. Nosso plano, até aqui muito bem executado, consistia em ficar em um dos banheiros até o início da sessão. Escolhemos o das mulheres, que estava trancado. Muito melhor, pensamos. Ninguém vai querer entrar aqui. Escalamos a parede e caímos os quatro naquele cubículo. Para aumentar o desconforto, estava imundo. Nossa!…Alguém não teve tempo para se acomodar! Mas o esforço valia a pena. Ah, se valia! Vamos quebrar um tabu! Porque, só os adultos podem ver?! Em meio a um aroma nada agradável, demos graças quando soou o primeiro “gongo” anunciando o início da sessão, momento em que alguém bate à porta. Entreolhamos assustados. E agora? Nova batida, mais insistente! Foi aí que o “Pintado”, afinando a voz, mandou: “Tem gente”! Um misto de riso e tensão, ruído de passos que se afastam e nós, mais uma vez, escalando a parede para sair daquele inferno e penetrar, ansiosos, no salão já escuro do Cine Palas. Estava começando a exibição de um filme horroroso sobre doenças venéreas, “Veneno Lento”.
[box style=’info’]Celio Moreira
conhecido também como O Sombra, do Jornal de Vanguarda, é um dos grandes profissionais de comunicação da história do jornalismo nacional.
[/box]
1 Comment
sou muito fã desta sessaõ, parabéns.
Comments are closed.