O Moçambique
Por Emílio Amadei Beringhs*
Março de 1969
Dentre todas as modalidades folclóricas existentes, grande parte delas trazidas pelos escravos vindos da África, o Moçambique exerce função de caráter tipicamente religiosa em nosso país, se bem que, pela sua origem, trata-se dança ritual africana.
Poucas são as cidades do interior em que se cultiva o Moçambique, a Congada e outras danças típicas, que podem ainda ser apreciadas. Taubaté é uma delas.
O Moçambique tem um ritual todo especial. Os seus componentes são caracterizados, trazendo como ornamentos indispensáveis aqueles guizos presos aos tornozelos e como acessórios paus lisos ou escamados, porém, retos, aí da ordem de um metro e tanto, de comprimento. Há muitos e muitos anos existia na Fazenda do Cataguá um grupo de moçambiqueiros que, religiosamente, realizavam seus ensaios e apresentações, estas quase sempre por ocasião das festas juninas, das quais já falamos em outra crônica.
Nossa gente, hoje, pouco conhece da história dessa dança, mas, muitos, sem dúvida, já a terão apreciado.
Vele pela novidade.
Formam-se duas filas e os seus componentes, vestidos a caráter, começam a dança, cujas movimentações são ordinárias, obedecendo sempre ao regulamento.
Cada movimento tem a sua significação, e, quando chega o momento do canto, ponto alto da apresentação, os moçambiqueiros acercam-se, batem firme com os pés, movimentando os guizos e trançam os paus, batendo uns contra os outros, ritmidamente.
Chamam a isso de preparo para a cantoria ou, mais comumente, como fundo.
Naquela recuada época, o Moçambique da Fazenda de Santo Antônio do Cataguán tinha um dirigente muito zeloso de suas tradições. Era conhecido, apenas, pelo nome de “Seu Olímpio”. Era já idoso e isso servia aos propósitos da reunião, eis que era respeitado como chefe inconteste pelos quadrilheiros do Moçambique.
Quando se aproximava uma festa qualquer, em que tivessem de tomar parte, os moçambiqueiros treinavam sem cessar, quase sempre aos domingos, dentro da Fazenda.
Não era raro encontrar-se aquela fila de homens caracterizados, empunhando paus e com os guizos aos tornozelos, através das ruas dos cafezais mais próximos da casa-grande.
O Moçambique, como todos sabem, tem na sua bandeira a representação por excelência do rito religiosos. Não importava o conteúdo. A bandeira representava, invariavelmente, o superlativo do respeito.
Empunhada garbosamente pelo chefe, que ia à frente dos participantes, fazendo evoluções que correspondiam ao ordinário do regulamento, a bandeira constituía o motivo de enlevo para todos.
Certa vez, no entanto, durante um treinamento mais severo, o chefe, o “Seu Olímpio”, teve o desprazer de ouvir, lá bem atrás, no fim da fila ondeante, um zunzum característico de conversa. Apurou os ouvidos. O assunto era futebol ou coisa parecida.
“Seu Olímpio” soprou seu apito e tudo ficou estático, à espera da “ordem”. Voltou-se então para a turma e foi logo advertindo: – Olha, moçada! É preciso que todos respeitem a bandeira… Vocês não estão vendo ela aqui? Então? Que é que significa essa prosa aí atrás?
E erguia a bandeira, que trapejava ao vento.
Fez-se silêncio imediato. O treinamento continuou.
Daí a pouco, no entanto, “Seu Olímpio” tornou a ouvir a conversa que vinha lá detrás. Conversa que seguia algo animada.
Parou de novo o treino, emitindo um apito agudo e prolongado.
E colérico, vento-se desprestigiado pelos quadrilheiros, porque o Moçambique era a razão de ser de sua vida, foi logo dizendo: – Cambada de vadios! Ou vocês param a conversa ou eu jogo esta porcaria no mato… – E apontava para a bandeira.
Nunca, em tempo algum, a bandeira fora tão aviltada. Mas isso se ficou devendo à quase privação de sentidos do velho “Seu Olímpio” que, vendo-se envolvido pelo desaforo, perdeu a calma.
Não há dúvida, caros amigos, que há muita coisa interessante a contar à nossa gente.
Dentre as justas folclóricas, naturalmente, já deturpadas pela ação do tempo, o Moçambique é uma das mais curiosas.
No entanto, requer respeito absoluto dos participantes.
E é contando uma das facetas mais interessantes da vida de outrora em nossa cidade que estamos escrevendo, página por página, a história de um povo lutador. Retalhos da vida íntima. História simples, singela, que traduz uma saudade imensa dos tempos idos, desses tempos que o progresso vem pressionando, afastando, cada vez mais, das nossas mais caras recordações.
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Publicado originalmente no livro Conversando com a Saudade, do mesmo autor
Emílio Amadei Beringhs
Desde menino foi funcionário da CTI.
Atuou por mais de 50 anos no jornalismo taubateano, descreveu com maestria o cotidiano taubateano. Integrou o Instituto Geográfico de São Paulo. Foi um dos pioneiros do rádio amadorismo no Vale.
Na radiodifusão convencional, foi responsável, junto com Alberto Guisard, pela pioneira Rádio Bandeirantes.
Em 1941, foi co-fundador da Rádio Difusora de Taubaté. Foi sócio fundador do Aero-Clube de Taubaté.
Em 1967, escreve o primeiro volume do obrigatório livro Conversando com a Saudade, descrito por muitos como pedaços da alma de Taubaté. É, também, de sua autoria, a bandeira de Taubaté