A SERRA DA MANTIQUEIRA E A APROPRIAÇÃO DA PAISAGEM
Por Gerson de Freitas Junior*
Há alguns meses tive a oportunidade de ler um artigo escrito pela Professora Rachel Abdala, intitulado “Verticalização e Vertigens”, e que foi publicado no Almanaque Urupês em maio de 2014. Na ocasião, não apenas considerei o artigo muito pertinente, tendo em vista o desregrado crescimento imobiliário regional, como também compartilhei com a autora muitas de suas considerações sobre a verticalização.
Assim como ela, tenho a oportunidade de abrir as janelas e me deparar com uma vista que estimula a contemplação. Ao invés do Cristo de Taubaté como ocorre com a Profª Rachel, posso divagar olhando para a Serra da Mantiqueira a partir de Pindamonhangaba. Sendo assim, a partir da discussão aberta pela colega historiadora, pensei em contribuir utilizando o enfoque da Geografia. Além disso, compartilho com a colega a preocupação com a necessidade de limites efetivos à verticalização regional.
Sempre que olho a estonteante “Muralha”, seja de casa ou durante minhas viagens pela região, lembro-me imediatamente da poética descrição da Mantiqueira datada de 1817, presente no magnífico “Viagem pelo Brasil (1817-1821)”. Nesta obra, que narra a jornada (em lombo de muares!) dos naturalistas germânicos Spix e Martius pelo Brasil durante o século XIX, faz-se referência aos “belos contornos azulados” da Mantiqueira. Mesmo após quase duzentos anos da passagem de Spix e Martius pelo Vale do Paraíba e com praticamente toda a paisagem da região alterada, os mesmos contornos azulados da Mantiqueira permanecem encantando a vista de valeparaibanos e viajantes que percorrem a região. A “imponente” Serra da Mantiqueira continua a se destacar no quadro paisagístico regional, apresentando, entre outros, grande valor simbólico na identidade da população.
“A paisagem pode ser também compreendida como um aspecto do mundo real que tem valor por si mesmo, já que pode oferecer satisfação estética, recreacional, espiritual, ou ainda ser objeto para fins educacionais e científicos” (VENTURI, 2006, p. 10).
Contudo, o acelerado e intenso processo de expansão imobiliária verificado na última década, caracterizado pelo elevado aumento do número de prédios, não tem sido devidamente integrado a estudos do potencial paisagístico regional. A Serra da Mantiqueira, um marco paisagístico natural, cujo aspecto pode ser considerado como um Recurso Natural público de uso indireto para diversos fins (turístico, contemplativo, artístico, etc.), tem sido apropriada pelo setor imobiliário, como resultado do acelerado processo de verticalização. O aumento do número de prédios e o adensamento de construções formam um obstáculo, diminuindo o acesso público à Mantiqueira.
“O próprio relevo, como um aspecto da paisagem, poderia ser considerado um recurso natural imaterial de aproveitamento indireto” (VENTURI, 2006, p.10).
A apropriação da paisagem pelo setor imobiliário restringe o acesso à vista da Mantiqueira àqueles que moram nos andares mais altos dos prédios com faces voltadas para o setor Norte da região e, logicamente, restringe o acesso aos que podem pagar por uma vista privilegiada nas elevadas moradias dos prédios.
“No mercado imobiliário, imóveis com o mesmo padrão material podem ter valores diferenciados caso estejam próximos ou voltados para diferentes aspectos da paisagem, como a vista para o mar, por exemplo. A materialização da apropriação indireta deste recurso natural manifesta-se pela diferença de preço dos imóveis. Essa possibilidade existe, já que, culturalmente, alguns aspectos da paisagem são mais valorizados que outros (VENTURI, 2006, p.10).
Assim como o valor de imóveis com “vista para o mar” é mais alto e são privilegiados aqueles que podem “comprar” a paisagem da orla marítima, em breve, mantendo-se o ritmo de verticalização atual nas cidades da região e a ineficiência em determinar e garantir limites de altura para os prédios na borda de platôs sedimentares e nos baixios que os circundam, a vista da Mantiqueira será um raro privilégio.
Sendo assim, como enxergo poesia sempre que olho para a “Serra que chora”, caminho para o fim do texto com o poema “Serra da Mantiqueira”, de Fátima Fleming, no qual a autora, de forma muito feliz, faz referência aos benefícios coletivos proporcionados pela Serra.
“Serra da Mantiqueira
Moldada em rara beleza
Tua Majestade em graça
Brindando a natureza,
Guardas segredos contigo
Não revelados, porém,
Teu encanto e liberdade
Jamais negaste a ninguém,
Serra da MantiqueiraCoando a respiração
Presente verde encanto
doado sem restrição²…
Tuas curvas, teus caminhos
Teu verdor tão livre ao léu;
Imponência exuberante
Cochichando algo aos céus”.[1]
Portanto, sendo a observação da Serra da Mantiqueira um benefício de uso público e coletivo acessível tanto aos habitantes de municípios da região, como aos viajantes que percorrem o Vale do Paraíba por intermédio da via Dutra, a definição de limites à altura de edifícios e o cumprimento de normas para a verticalização, possibilitarão o uso indireto deste recurso natural de forma ampla e socialmente mais justa, garantindo que a Mantiqueira, como bem colocou Fátima Fleming, continue doando seu encanto sem restrição e sem negar suas belezas a ninguém.
[1] Grifo nosso. Disponível em: http://fatimafleming.blogspot.com.br/2012/10/serra-da-mantiqueira.html
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* Gerson de Freitas Junior é mestre em Geografia Física pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador de Biogeografia e Conservação do Meio Ambiente, História do Pensamento Geográfico e Técnicas de Campo e Laboratório em Geografia, enfocando aspectos relativos à pesquisa e ao ensino em Geografia.