Menos é mais
Texto de Renato Teixeira publicado na edição 705 do Jornal Contato
Nem sei quantos discos existem com meu repertorio. Ao longo do tempo as gravações originais foram se agrupando em coletâneas e, num determinado momento, perdi a conta.
Talvez por comodismo, deixei de me preocupar com contagens. A vida segue. Recentemente, a Sony lançou uma caixa de CDs com os cinco LPs que eu gravei na RCA Victor, remasterizados. Então retomei contato com meu trabalho dos finais dos anos setenta e começo dos oitenta.
Quando termino um disco, fico ouvindo bastante. Depois… depois esqueço. Mesmo nos shows, os arranjos das gravações originais vão se adequando, as interpretações vão ganhando maturidade e, no fim, perco contato com os arranjos das gravações iniciais.
A caixa da Sony reavivou minha memória; meu parceiro na maioria desses trabalhos na RCA foi o Sérgio Mineiro.
Um dia, sentados num café na Galeria Metrópole, decidimos montar uma banda para “reformar” a música caipira do Tonico e Tinoco. Eu já havia produzido algumas canções onde esse tipo de música surgia apoiada em acordes da MPB, com uma pulsação latino americana impregnada de guaranias, chamamés e zambas da Argentina. Nossa banda chamava-se “Água”.
Gravamos bastante e o Mineiro, um cara musicalmente equilibrado, foi transformando nossas gravações em verdadeiras aulas de bom senso sonoro. Conversávamos muito sobre o controle dos excessos, pois para se escrever um arranjo existem milhões de belas possibilidades.
Já naquele momento trabalhávamos com 32 canais e inúmeros periféricos. Poderíamos sim colocar trinta e dois canais de instrumentos fazendo coisas lindas e depois, na mixagem, a gente equilibrava tudo e o serviço estaria terminado. Mas, desde o principio decidimos que a melodia e a letra seriam protagonistas e o arranjador cuidaria do figurino das canções.
Ensaiávamos bastante. Num momento onde todas as impossibilidades criadas pela ditadura militar estavam no auge, nossos ensaios viraram uma espécie de encontro musical onde podíamos trabalhar seriamente em algo que, naquele momento, não tinha mercado algum para sobreviver.
Músicos incríveis tocaram no Água. Nelson Ayres, Zeca Assunção, Tuca Godoy, Oswaldinho do Acordeom, Willy Werdaguer, Papete, João Carlos Pegoraro, Carlão de Souza, Dudu Portes, Emilio Carrera, Marcinho Werneck, Rodolfo Grani, Natan Marques e até o grande Dominguinhos, em determinados momentos.
Flautas, violões, sanfona e viola, todos fazendo música serena, harmoniosa e com um aroma rural evidente; ensaiar com o Água, era uma grande e imprescindível curtição. Muitas vezes vimos o dia nascer, tocando.
Durante as gravações, buscávamos o som puro dos instrumentos e investíamos na dinâmica e nas pulsações. E tocávamos um tipo de música que se propunha a dar sequência à música da cultura caipira sob uma ótica mais acadêmica, mais lobateana, digamos assim.
Na hora da mixagem, que é quando alinhamos os instrumentos definindo timbres e equilibrando volumes, começava uma verdadeira guerra contra os excessos. A música como protagonista, sempre.
No Água, uma banda de virtuosos, a tesoura do Sergio Mineiro “cortava excessos” como se fosse a tesoura do implacável sensor da ditadura que se achava uma espécie de protagonista da cena artística daquele momento. Uma bela composição não precisa que se fique pendurando nela enfeites e mais enfeites que acabam mudando o rumo das coisas abalando a lógica das canções. O bonito é quando a composição brota como uma rosa num arranjo que a faça ficar viçosa e em pé. Simplesmente, bela. No entorno de uma melodia, que haja muita luz para que ela possa exibir o seu carisma sonoro e ganhar o cora- ção das pessoas.
Que o espírito das pessoas equilibradas musicalmente como Sérgio Mineiro esteja presente, sempre, em todas as gravações para que a música saia sempre bem vestida e deixe a moçada com água na boca.
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