Rita Estela Seda para Lobato
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São José dos Campos, 02 de abril de 2019,
Querido e estimado Monteiro Lobato,
Ao receber sua carta eu me transportei para o ano de 1911, não que eu já tenha vivido nesse período, mas porque atualmente as pessoas não admitem o uso dessa tal expressão “Barriga Suja”, que na sua época era tão normal… hoje é imoral. Então, eu compreendi sua expressão e segui em frente com a leitura.
Sua comparação entre a literatura e a mata virgem me deu suporte para voar alto na imaginação, eu pousei em uma área
enigmática de uma montanha de pensamentos, terra que precisou de purificação através do arado das minhas ideias. Passei dias sulcando a terra virgem de uma folha de papel (hoje em dia tela do computador) para semear palavras. Esperei alguns dias e as letras verteram boas e ruins, joio e trigo, em um vasto campo. Ainda não fiz a colheita, pois se eu arrancar o joio, pensando em purificar a lavoura, o trigo virá junto, pois suas raízes se entrelaçaram no subsolo dos meus pensamentos. Então, querido amigo Lobato, tenha paciência comigo. Releve as inconsequentes palavras que brotaram junto às boas.
Penso que sua espera pela literatura balzaquiana, em São Paulo, tenha dimensões do infinito, pois até hoje estamos aguardando a finalização da Comédia Humana, que seria determinada pela mudança de Honoré de Balzac para nosso Brasil Varonil, e sabemos que isso não aconteceu. Também posso argumentar que o mestre de obras literárias, Zola, aprendeu assentar os tijolos das palavras e se esqueceu de abrir um buraco no tijolo da lareira; todo humano tem sua parte física, não vive só do intelecto, precisa também respirar. Zola morreu por inalar grande quantidade de monóxido de carbono, por causa de uma lareira lacrada, que triste.
São tantos “ais” que a história omite!…não é mesmo Lobato? Durante sua estadia na fazenda, Lobato, creio que foi a interferência desse caboclo queimador de mato que o fez ver o Jeca Tatu através das orelhas de urupês e, deste modo, nos deu a
consciência escatológica da autodestruição. Sabe Lobato, até hoje queimam terras em razão (e sem razão) do cultivo latifundiário de monoculturas. Uma verdadeira praga.
Não vou discordar de você sobre os italianos que vieram trabalhar no Brasil no fim do século XIX e começo do século XX. Os
bandoleiros até espantaram um pouco, eu disse… um pouco… os “barbas ralas” das terras produtivas e contrataram os calabreses para essa labuta. Os italianos trabalharam nessas terras onde antes a mão de obra era escrava, às duras penas deram o suor de seu rosto e marcaram seus passos nas lavouras de café e de fumo. Esse é um legado que conheço bem, meus avós eram italianos. Sei o quanto sofreram e se doaram pelo Brasil.
Na questão da migração dos fortes para Oeste, você marcou o início de uma nova etapa brasileira, que o diga Cassiano Ricardo. Essa marcha para oeste fez com que o coração do Brasil fosse sagrado pelos trabalhadores visionários a um novo país. Você bem que manteve correspondência com Cora Coralina, poetisa descendente de Anhanguera, bandeirante que fez da marcha para oeste uma ponte para o desconhecido Brasil. Você sabe o quanto pulsa o coração de nossa nação neste vasto território goiano.
No encalço de leitores é preciso uma editora e você tinha razão a respeito da questão monetária. Um livro ainda hoje é caro para quem escreve, para quem publica e para quem compra. Não houve mudanças radicais, Lobato. Sua ideia de Livro Fragmentário ainda não foi totalmente incrementada no mercado livreiro. Estamos aguardando novidades… mesmo que sejam velhas novidades.
Sua descrição das horas mortas de algumas cidades históricas criou um colorido mítico que resultou na “pasmaceira” do legado de lugares de cultura que souberam mostrar que a felicidade consiste nesse marasmo, nesse deitar paradeiro, que é oposto à loucura tecnológica atual, da correria, do imediatismo.
Sabe Lobato, você teceu uma refinada analogia entre rio, peixe e escrita. Sua versatilidade nos traz o ingênuo e puro conhecimento de quem trafega pelas terras valeparaibanas. Seu humilde estudo da nascente do rio transmuta para o apogeu do espírito humano. O regato desce o vale como se fosse uma semântica de versos que recebe afluentes e que os transforma em um rio caudaloso. Por onde passa, esse rio modifica a paisagem e cria novas vidas.
Sim, “o Piraquara é uma criação do Paraíba.” Pois ele vive do rio, depende do rio para sobreviver. O Piraquara entende a canção do rio, ele navega na terceira margem, aquela que olhos humanos desconhecem, aquela onde somente os peixes conhecem, tal qual o lambari do rabo amarelo, o taiabucu de rabo vermelho e o cascudo nhacundá que vive no fundo do rio. Essa dialética do Ser e do nãoSer faz do Piraquara uma entidade mitológica. Sabe Lobato, assim como os peixes, o Piraquara está em extinção. Precisamos repovoar os rios com Piraquaras. E fazer voltar às cheias que fertilizam terras ribeirinhas, contribuindo para uma boa colheita.
Não tenho dúvidas, Lobato, que muitas vezes as águas do rio Paraíba são salgadas pelas lágrimas das mães que procuram os corpos dos filhos levados pela correnteza, pelo capricho de nadar mais fundo, pelo mal trato de uma canoa, pelo arrasto dos redemoinhos, pelo simples descarte de uma vida. Essas mães choram, seus olhos esbugalham em lágrimas… até que o rio cospe fora os amados corpos, devolvendo-os para os braços maternais.
No fluxo da água do Paraíba existe a molécula da memória escrita pelo seu átomo de Hidrogênio, querido Lobato, e, com ela, saciamos nossa sede de histórias. Por isso, não fica desolado não!
Sorria e viva feliz aí no Paraíso, porque aqui na Terra você tem lugar garantido no coração de seus leitores.
Da sua amiga santa-ritense, da terra de Rangel,
Rita Elisa Seda
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