Pelas ruas da cidade

 Pelas ruas da cidade

Imagem: Vista aérea de Taubaté em 1953. Acervo MISTAU

Texto de  Rachel Abdala

Cantadas em prosa e verso as ruas que compõem uma cidade são o eixo a partir dos quais é possível chegar aos vários pontos da cidade. As ruas não são, ao contrário do que se pode pensar, lugares vazios, de mera passagem, muito pelo contrário, já houve quem dissesse que é nas ruas que as coisas acontecem. É nas ruas que as pessoas se encontram, tornando esse espaço público, que é de todos, como todo espaço dessa natureza, e de cada um em especial, pois as pessoas vão se identificando com as ruas onde nasceram, onde cresceram, onde trabalham. Não é exatamente nas ruas que as pessoas nascem, era, em tempos mais antigos nas casas e hoje nos hospitais ambos localizados nas ruas, mas dizemos nas ruas, uma figura de linguagem que denota a afetividade que se estabelece com esse espaço urbano.

Emílio Amadei Beringhs, em uma de suas crônicas radiofônicas que foram posteriormente coligidas em volumes com o mesmo título de “Conversando com a Saudade”, trata com carinho e saudade da rua onde nasceu. A crônica tem, inclusive, esse título.

Um dia destes estive parado em determinado ponto da Rua 4 de março, à espera de pessoa de minha família. De dentro do Fusquinha, bastante aquecido naquela hora, eu espiava pelopára-brisa, ao longo daquela viaque encarna uma das datasmais gloriosas da nossahistória de povo civilizado. Foi a 4 de março de 1888, dois meses e algunsdiasantes da LeiÁurea, que Taubaté realizou soleneTe-Deum, na IgrejaMatriz, paracomemorar a extinção da escravaturaemnossomunicípio. (1968, p. 120)

Planta de Taubaté feita por Arnaud Julien Pallière, em 1821.
Planta de Taubaté feita por Arnaud Julien Pallière, em 1821. Clique para ver maior.

Assim, Beringhs mostra como é possível uma mesma rua ter um significado tão relevante para uma pessoa e para toda a sociedade, como é o caso da Rua 4 de Março de Taubaté, rua na qual se localizava a casa de sua família, na qual ele nasceu e por isso tão importante para ele, e a rua que recebeu esse nome devido à extinção da escravatura realizada prematuramente na cidade de Taubaté.

Como todacidade fundada no período colonial brasileiro, Taubaté desenvolveu-se a partir do núcleourbano formado pelaigreja, a câmara e a cadeia. Invariavelmente, ao lado da igreja, ou tendo-a comocentro, reservava-se o local da praça, tambémchamada de largo. Os espaçospúblicos formaram-se, ao longo da história, pelanecessidade de existência de locaisnosquais fossem realizadas atividades coletivas, como o comércio, o lazer e a devoção. Essesespaços surgiam de acordocom a demanda, e foram compondo o tecidourbano. Em Taubaté o traçado urbano das ruas seguiu o traçado dos rios e, em ângulos retos formava primitivamente no início de seu desenvolvimento, um “tabuleiro de xadrez”, aos moldes da colonização portuguesa, como nos mostram os estudos de Sérgio Buarque de Holanda.

Para além da funcionalidade como passagem e ligação de pontos privados e coletivos, as ruas foram, ao longo do tempo povoando o imaginário de poetas e escritores, que eram, em primeiro lugar, munícipes que, como todos os outros também se utilizavam necessariamente das ruas para ir e vir.

Guilherme de Almeida nasceu em 1890 e ficou conhecido como “o Príncipe dos Poetas Brasileiros”. Usando o recurso estilístico da aliteração no poema “A Rua de Rimas”, traduz o seu imaginário, que sonhava e refletia sobre o significado da rua na vida das pessoas:

A rua que eu imagino, desde menino, para o meu destino pequenino
é uma rua de poeta, reta, quieta, discreta,
direita, estreita, bem feita, perfeita,
com pregões matinais de jornais, aventais nos portais, animais e varais nos quintais;
e acácias paralelas, todas elas belas, singelas, amarelas,
doiradas, descabeladas,
debruçadas como namoradas para as calçadas;
e um passo, de espaço a espaço, no mormaço de aço baço e lasso,
e algum piano provinciano, quotidiano, desumano,
mas brando e brando, soltando, de vez em quando,
na luz rala de opala de uma sala uma escala clara que embala;
e, no ar de uma tarde que arde, o alarde das crianças do arrabalde;
e de noite, no ócio capadócio,
junto aos espiões, os bordões dos violões;
e a serenata ao luar de prata (mulata ingrata que me mata…);
e depois o silêncio, o denso, o intenso, o imenso silêncio…
A rua que eu imagino, desde menino, para o meu destino pequenino
é uma rua qualquer onde desfolha um malmequer uma mulher que bem me quer;
é uma rua, como todas as ruas, com suas duas calçadas nuas,
correndo paralelamente,
como a sorte, como a sorte diferente de toda a gente, para a frente
para o infinito; mas uma rua que tem escrito um nome bonito, bendito, que sempre repito
e que rima com mocidade, liberdade, tranquilidade: RUA DA FELICIDADE…

Uma rua que como todas as ruas é um espaço público, de sociabilidade e de ligação, mas que também como todas as ruas tem elementos que a compõem – casas, árvores, prédios comerciais, etc – e um nome e lembranças que a diferenciam de todas as outras ruas.

Numa perspectiva social, no poema “Pelas ruas da cidade” Ferreira Gullar discute a função social da rua a partir do jogo de alguns nomes de ruas conhecidos:

[…] Na Rua do Sol me cego,
na Rua da Paz me revolto
na do Comércio me nego
mas na das Hortas floresço;
na dos Prazeres soluço
na da Palma me conheço
na do Alecrim me perfumo
na da Saúde adoeço
na do Desterro me encontro
na da Alegria me perco
na Rua do Carmo berro
na Rua Direita erro
e na Aurora adormeço […]

Ah os nomes! Os nomes das ruas, que servem a uma necessidade de identificação e localização são também modificados ao longo do tempo, refletindo a dinâmica social e política de uma cidade. Além de serem palco de grande parte dos acontecimentos de uma cidade, as ruas também testemunham a história das cidades das quais fazem parte pelos seus nomes. A antiga rua Cavarucanguera hoje ostenta o nome do Brigadeiro José Vicente Faria Lima, que, em sua gestão como secretário de Estado dos Negócios de Obras Públicas viabilizou a construção, em Taubaté, do novo prédio para a Escola Estadual Monteiro Lobato, em 1957.

Assim, muitas ruas foram e são batizadas homenageando algum “filho ilustre da terra” ou que tenha por ela feito algo de relevante.

Rua 9 de julho em filme de Amácio Mazzaropi. Acervo CDPH.
Rua 9 de julho em filme de Amácio Mazzaropi. Acervo CDPH.

Há também, como já vimos no caso da Rua 4 de março, ruas que são batizadas em homenagem a datas históricas da própria cidade, do estado ou do país. Por exemplo, muitas cidades do Estado de são Paulo têm ruas chamadas 9 de julho, em lembrança à participação dos paulistas na Revolução constitucionalista de 1932. Taubaté também tem a sua 9 de julho, que, por sinal, é hoje uma das ruas mais trafegadas do centro da cidade.

No início das cidades coloniais brasileiras as ruas recebiam nomes funcionais: Rua Direita, Rua do Comércio, Rua do Beco. Depois as Câmaras Municipais assumiram o pomposo ofício de nomear e, em alguns casos, renomear as ruas.

Umberto Passarelli se dedicou, na década de 1980 a pesquisar e a escrever sobre a denominação de vias e logradouros públicos de Taubaté. Esses textos foram publicados inicialmente em um jornal da cidade e posteriormente coligidos numa obra que se tornou referência sobre o assunto.

Dúvida, questão, crise? A partir da constatação de que é na rua, um espaço aparentemente vazio, que se completa com significado das vidas das pessoas que moram nas cidades ou que nelas passam, devemos refletir sobre o significado das ruas em nossas vidas e na História das cidades. Afinal, é no jogo entre público e privado, individual e coletivo que se estabelece a dinâmica histórica.

Referências:

BERINGHS, Emílio Amadei Conversando com a saudade…. Taubaté: Bisordi, 1968.

PASSARELLI, Umberto. Contribuição à História de Taubaté- denominação de vias e logradouros públicos. Taubaté: Prefeitura Municipal, 1996 (Taubateana, nº 15)

[box style=’info’] Rachel Duarte Abdala
rachel_thumbÉ professora de Teoria da História na Universidade de Taubaté, doutoranda em História na Universidade de São Paulo.

 

 

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3 Comments

  • Rachel,simplesmente AMEI sua matéria!!!!
    Parabéns!!!

  • Trazer á tona o Significado das ruas, parabéns, Rachel Duarte Abdala.

  • Queria saber a origem do nome da rua quatro de março, gostei da Historia.

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