Texto de Celio Moreira
Mamãe deu a última espetada no lombinho de porco ao molho de laranja, olhou pra nós e perguntou: – Já lavaram as mãos para almoçar?! Nisso, ouviu-se o bater de palmas no portão. Quem seria?! – Célio, vá ver quem é, ordenou ela, sussurrando! Corri para a janela da frente e olhei pelo que apelidamos de “periscópio”, um sugestivo buraquinho que nos dava saber se atenderia ou não a inesperadas visitas. Desta vez, porém, a visita já havia penetrado e dava para ouvir seus passos no corredor que levava aos fundos da casa. Para embocar desta maneira, claro, só podia ser… o Sinhô! Até hoje não sei e vou continuar não sabendo como surgiu esse relacionamento tão familiar em nossa casa! – Bom dia! Dá licença?! Sinhô se anunciava, já dentro de casa, na porta da cozinha e sabia exatamente o momento em que nosso almoço era servido. Chegava na hora, com precisão absoluta! Não errava uma o danado! O que sabia sobre ele é que morava longe, pelos lados do Areão, talvez.
Nessa nova investida, Sinhô aparentava cansaço, castigado que foi pelo sol ardente daquele pleno verão. Puxou uma cadeira, despencou a bunda sobre ela e fez de leque o surrado chapéu, que começou a agitar frente ao rosto. – Calor hein, meninada?! O sol não tá de brincadeira! – E porque o senhor não espera o sol esfriar para vir aqui, perguntei. Sinhô tossiu, sem responder. Seu olhar não despregava da cozinha, acompanhando os movimentos de minha mãe que retirava do fogão, ainda flamejante, a comida deliciosa de todos os dias. – Sinhô, vai querer almoçar? –Acho que vou aceitar, sim, senhora! E aceitava, mesmo, na bucha, como em outras tantas vezes. Ao final não dispensava a sobremesa, nem o cafezinho que, se não fosse fervendo, desprezava. Minha mãe tinha que voltar com o bule para a chapa quente do fogão. E ele sorvia aquele café, tipo chumbo derretido, que causticava ainda mais seu já lacerado lábio inferior. Estalava a língua e exclamava:
– Isto sim é café! Obrigado, dona Elza!
Não demorava muito para puxar o cebolão das calças, falar que já estava ficando tarde, que havia outras coisas para ver e precisava voltar a casa antes do anoitecer. A pernada , conforme ele dizia, era longa. Será que Sinhô ainda pretendia filar o lanche da tarde na casa de tia Celeste?
Ao contrário de Sinhô, Benedito, a quem chamávamos de “DITÃO”, compunha a dupla que costumava aparecer para o “rega bofe”. Este, porém, com menor frequência e não acertava uma! Vivia batendo na trave! Quando chegava, as panelas e louças já estavam lavadas e a sobra já havia alimentado uma das velhinhas do Asilo São Vicente de Paulo. Mas ele ia ficando, ficando, fazendo cera, até a hora do café. Isso lhe dava a certeza de que seria servido no meio da tarde e não tinha como perder. Afinal de contas, alguma coisa teria que render para enganar o vazio de sua pobre barriga, que roncou, ao perceber que o objetivo principal, “a boia”, lhe escapara! Mas, enquanto o lanche não vinha, e nós já esperávamos com bastante ansiedade, DITÃO começaria a contar as mentiras mais cabeludas do planeta! E o fazia com voz tonitruante, chegando a assustar, certa vez, nossa vizinha, Dona Virgínia, ao explicar como liquidou uma onça enorme que havia entrado em seu quintal com o firme propósito de comer o BOB, seu vira-lata de estimação. – Segurei a safada pelo pescoço e comecei a apertar. Quando ela abriu a boca prá me MORDÊ, aí é que apertei MÊMO sua GUÉLA. Ela OIAVA prá mim com desespero, mas não tive dó. CABEI de APERTÁ e nunca mais vai COMÊ nenhum cachorro!
Sentamos próximo ao DITÃO e demos a primeira cutucada:
– E aí, seu Benedito, alguma novidade pra contar?
-E não? Nem QUERA SABÊ o que aprontei, ONTE, no Cine Palas. Foi no Balcão.
Cid e Céia já não conseguiam conter o riso e eu perguntei:
– Mas, o que foi que aconteceu?!
– Nem QUÊRA SABÊ! Veio a PULÍCIA, acendeu as LÚIZ, paro o firme, mas eu não parava de ENFIÁ a mão nos quatro alemão que TAVAM ATRAIZ de mim!
A partir daí começamos a rir, sem mais condição de parar! Quá,quá,quá!…
– OCEIS tão rindo PRUQUE não TAVAM lá! OS ALEMÃO tamêm não parava de rir, morriam de SASTIFAÇÃO, quando os nazista começaram a FUZILÁ os SORDADO americano. MAGINI si eu ia DEXÁ em branco. Taquei a mão nos quatro e ainda quebrei umas vinte PORTRONA, vinte e duas pra sê mais certo!
DITÃO contava as mentiras com a maior naturalidade e aumentava o tom do discurso na medida em que o volume de nossas risadas crescia. Muitos de nossa família e das pessoas que conheceram Benedito, ainda hoje sabem que qualquer historia contada que deixe transparecer uma “unha” que seja de dúvida, será premiada, inevitavelmente, com a frase: “Olha o DITÃO aí”!
Relembro, por exemplo, um fato engraçado que contei para meus pais e irmãos que provocou muito riso mas não me livrou de receber o imerecido prêmio. Claro que não gostei! Inda bem que havia testemunha: Jessé, Jessé Zamith, um bom amigo desde a infância, que também participou da história. Tudo começou quando aprontamos uma brincadeira com um ribeirinho que parava toda semana no bar da esquina da Rua Barão pra tomar cachaça. Carregava sempre uma grande cesta de tiras de bambu trançado contendo coisas para vender no Mercado e , quando voltava, trazia pequenas compras para a sua casa. Pedro – era esse seu nome – entrava no bar, colocava a cesta atrás de uma das portas e pedia um “rabo de galo”, ou seja, vermute com cachaça. Dentro de sua simplicidade, mostrava-se uma pessoa alegre e boa de papo. Depois da terceira dose – bem caprichada – e quando sua língua começava a enrolar, ele parava de beber. Despedia-se de todos, pegava a cesta e desaparecia por entre as sombras das grandes paredes da CTI, rumo aos cafundós da Estiva e perto do Rio Paraíba, onde dizia morar. Foi numa de suas paradas naquele bar, que resolvemos fazer a brincadeira. Em sua cesta já havíamos colocado um senhor paralelepípedo e ficamos na expectativa do efeito. Leopoldo, o dono do bar, que tudo sabia, colaborou para que realizássemos a operação, pedindo para que olhasse umas fotos que tirou na Itália quando servia na FEB. Depois do último gole da terceira dose, já bem anestesiado, virando a cabeça para todos os lados e com o olhar meio perdido, Pedro disse que ia embora. Pegou a cesta, fez enorme esforço para colocá-la sobre um dos braços e saiu trôpego e meio confuso com a estranha carga, mas sem se tocar no que estava carregando. Ficamos rindo e apostando até onde levaria aquele pesado fardo! Depois de andar um bom trecho, quase próximo a casa de Alberto Guisard , ele parou e resolvemos correr em sua direção, já arrependidos do que fizemos.
–Nossa! Eu tava carregando isso tudo?! O que não faiz a cachaça, hein?!
– Desculpa a brincadeira, seu Pedro. Pensamos que o senhor, ao levantar a cesta, fosse notar a diferença.
– Uái! E a cachaça?! Si ocêis não avisa… o que qui minha muié ia dizê si eu chegasse cuéssa coisa em casa?
De qualquer forma e, felizmente, a brincadeira serviu para solidificar nossa amizade e sempre que nos encontrávamos vinha o convite para um almoço em sua casa.
– Minha muié cuzinha bem. Ocêis vão gostá! Tanto ele insistiu que, um dia, resolvemos confirmar nossa ida . Seria no próximo domingo, sem falta, que íamos filar o almoço na casa de Pedro.
– Não tem como errá, disse ele. Ocêis pega a Estiva e vão embora, até encontra um alagado. É que o Rio encheu , tapô a estrada e a água foi pará quase dentro di casa. É só andá mais um pocadinho e pronto!
No domingo, conforme combinado, lá fomos nós. Havia chegado o momento de filar o tal almoço. Durante a longa e cansativa caminhada rimos bastante ao imaginar até onde Pedro suportaria carregar o paralelepípedo. Já pensou? Chegar até aqui carregando aquele estrupício?!
Andamos mais uns quinze minutos e avistamos, finalmente, o trecho em que a água cobria toda a estrada e, a seguir, a casa de Pedro, num ponto ligeiramente superior e a salvo da cheia do grande rio.
“Oi, de casa!” Batemos palma e Maria, a mulher de Pedro, foi quem nos atendeu.
– Boa tarde, tudo bem? Ele tá esperando ocês. Foi catá uns gravetinho e não demora. Entrem! O armoço tá quase pronto!
Entramos e deu pra ver que a casa, apesar de bem simples, era muito bem cuidada. O aroma que vinha da cozinha ativou rapidamente nosso apetite. Ele sempre fez questão de dizer que a mulher é craque na cozinha e, pelo jeito… Não demorou muito, Pedro chegou todo alegre, nos deu a mão, bateu em nosso ombro… – Que bão que ocêis vieram. E foi assim que começamos a nos servir e até repetimos um bem temperado feijão com arroz, farofa e peixe à milanesa.
– Nossa, Pedro! Se soubesse que a comida era tão boa assim teria vindo há mais tempo. Dona Maria cozinha bem, mesmo, hein?!
– É sim, disse Jessé – nunca havia comido um peixe como este! Estava simplesmente delicioso!
-Peixe?… Era peixe não!… Com a enchente, a cascavé veio se escondê aqui na cozinha, bem no jeito de segurá ela pelo pescoço, cortá os filezinhos e dá prá Maria temperá prô armoço !
Com o estômago em ebulição, nos despedimos e voltamos pra casa sentindo náuseas e achando que o veneno da cobra começava a fazer efeito. Em casa ninguém engoliu a história e, como não podia deixar de ser, ainda me chamaram de “DITÃO”.
[box style=’info’]Celio Moreira
conhecido também como O Sombra, do Jornal de Vanguarda, é um dos grandes profissionais de comunicação da história do jornalismo nacional.
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1 Comment
Difícil dizer qual das crônicas é a melhor pois todas são excelentes, mas essa “Fila boias e a cascavel” é sensacional. Continue nos brindando com seus escritos espetaculares.
Obrigado !
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