NO TEMPO DO GUARANÁ JOANINHA
Texto de Célio Moreira
Acordei assustado no meio da noite e meus olhos foram aos poucos atravessando a escuridão do quarto para se fixarem estáticos em direção ao teto de estuque. Palavra que aprendi e distribuía com facilidade e ênfase toda vez que o assunto era “teto de residência”. Estufava o peito e mandava: – o nosso é de ESTUQUE! Nada mais que gesso, cola e água, última moda dos anos trinta e que, no verão, servia, sim, para esquentar ainda mais o ambiente. Já era a segunda noite que acordava em sobressalto. Desta vez a bexiga falava bem alto, pois, na festa de aniversário do meu amigo Tony, na Rua Barão, cheguei a exagerar um pouco no guaraná Joaninha que acabava de ser lançado em homenagem a famosa aviadora de Taubaté Joana Castilho. A bebida, verdadeira alegria do nosso tempo de criança, era isenta de tudo aquilo que se acrescenta hoje em dia para piorar a qualidade de nossos refrigerantes. Mas, cadê coragem pra levantar?! Ouvia o ressonar de meus irmãos e percebia que dormiam como pedra. – Pra ir ao banheiro, tenho que sair do quarto, atravessar a sala e ir até o corredor. Mas, será que não vou topar com uma das metades no meio do caminho?! Ainda guardava a emoção vivida no dia anterior quando correu a notícia de que uma pessoa fora cortada ao meio sobre os trilhos da via férrea. Foi perto de casa, em frente à Chácara do Visconde. O que vimos foi algo aterrador, nada comparável ao que havia assistido, tempos atrás, na Rua das Palmeiras, quando um infeliz deu cabo à vida atirando no próprio ouvido. A cena do homem dividido em dois pedaços, porém, não conseguia esquecer.Estava sangrando e bem viva àquela hora da noite, massacrando a mente e tornando ainda mais apertada minha bexiga. Estava, por assim dizer, entre a cruz e a espada, pois sabia que, se fizesse na cama, o castigo – pelo menos na minha imaginação – poderia ser bem pior que toda a desgraça que havia visto. E continuei ali, de olho no estuque e rezando para que o dia não demorasse a chegar.
Naquele tempo o silêncio predominava e a gente captava boas e más notícias no ar. Os ruídos característicos da cidade não incomodavam. Já estavam integrados ao cotidiano: o leiteiro com sua carrocinha puxada a cavalo; os vendedores de curau e pamonha com seus pregões; o vendedor de quebra-queixo, equilibrando o tabuleiro na cabeça; o biscoiteiro, batendo sua matraca; a partida e chegada dos trens; o longo apito da CTI, lembrando o horário de chegada ao trabalho e o som grave e prolongado do sino da Santa Terezinha chamando os fiéis para o culto. Na terra de Jacques Felix habitavam pouco mais de vinte mil pessoas. Automóveis – a maioria conhecida como FORD-BIGODE- havia poucos, quase não davam as caras. Será que se escondiam?! Tanto que, bem mais tarde (1956) descobri um, novinho, pintura e pneus intactos! Estava na garagem do Hospital Santa Izabel e pertencia a um de seus diretores. A estrada RIO-SÃO PAULO, que vinha dos lados da EMBARÉ e cortava a cidade pela Avenida 9 de Julho, nem sempre apresentava grande movimento e seu chão de terra batida, vez por outra sacudido pelo grande caminhão de mudanças “Bola Preta”, constituía um martírio para quem nela trafegasse em tempos de chuva. Os caminhoneiros, claro, jamais dispensavam enxadas, pás e corrente para as rodas. E não havia um dia em que eu não estivesse ali, no FREDIANI, em frente ao Jardim da Estação, o posto de gasolina mais movimentado da avenida. Assim, valeu aprender o difícil procedimento no reparo das rodas: primeiramente, utilizando barras de ferro e marreta, para soltar do aro um dos lados do pneu e retirar a câmara. Localizado o furo, após imersão em um tanque, o local era assinalado com um “xis” e lixado antes de receber o reparo com adesivo e ficar prensado alguns minutos na chapa quente da coladeira.
O Bar do Elias e o posto do FREDIANI eram paradas obrigatórias.
E ali se ouviam dos motoristas as mais severas críticas: “Que absurdo! Quando vamos ter uma verdadeira estrada?”! “Não é possível! O governo come o nosso dinheiro e não faz nada!” Incrível! Uma viagem entre São Paulo e Rio de Janeiro podia durar até uma semana na época das chuvas.
Mas foi no governo do presidente Eurico Gaspar Dutra que a nova estrada começou a ser desbravada. Em breve as duas capitais estariam condignamente ligadas.
Quando os trabalhos atingiram onde é hoje o DER a curiosidade nos empurrou até lá. Fomos ver as enormes máquinas tocando às entranhas da terra virgem que ia sendo removida em caminhões gigantes para nivelar outros pontos da grande esteira que se estendia rapidamente. Em breve a odisseia dos que trafegaram pela estrada RIO-SÃO PAULO seria apenas mais uma página da história.
Ao despertar, pela manhã, recordei o que havia acontecido entre os peões da estrada pouco antes de voltar para casa. Um princípio de tumulto, dois trabalhadores engalfinhados e os outros, com muito custo, conseguindo separá-los. – Se eu souber que foi você o autor daquela sacanagem, pode se preparar! Não vai ficar assim! – Que isso, cara?! Tá louco?!
Procurei saber a origem da briga e, vejam só o que aconteceu: alguns trabalhadores dormiam em redes utilizando árvores próximas à estrada. No meio da noite, exatamente na rede do peão furioso, alguém colocou uma
cobra não venenosa que provocou enorme susto quando resolveu passear pelas bandas de seu pescoço!
Estava ainda na cama, pensando na cena e sorrindo, quando meu pai passou. Vai demorar muito aí, maluco?! Levanta! Hoje tem mercado! Levei um susto ao me levantar. A bexiga estava vazia e, debaixo da cama… um lago!
[box style=’info’]Celio Moreira
conhecido também como O Sombra, do Jornal de Vanguarda, é um dos grandes profissionais de comunicação da história do jornalismo nacional.
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