Confira o texto de Cesar Kiraly, professor de Teoria Política e Pensamento Social Brasileiro
Antes de tudo, penso que devo dizer que o contextualismo é sempre bastante falso. A regra de sua prática é a relativização. Ou, o que é bastante pior, o exercício do amálgama. Talvez pior do que o contextualismo seja o relativismo, mas o quadro se torna ainda mais apavorante quando os dois estão juntos. Mas por quê? Porque a união do contextualismo com o relativismo dá início à prática pública da falsificação de objetos verdadeiros. Modo pelo qual os valores parecem verdade, mas duram muito pouco. São valores bem mais baratos, quando comparados com os verdadeiros, exigem muito menos, e fornecem, no que concerne a vida coletiva, muito, mas muito menos ainda.
Mas se digo isso, devo ter alguma intenção. Sim, afirmar que um enunciado moral é falso independentemente do contexto ou da relatividade. E, da mesma forma, que um enunciado moral é verdadeiro, sob os mesmos rigores. Por certo, que existem fenômenos mais confusos, da mesma forma, como existem modos da falseabilidade. Algo pode deixar de ser verdadeiro, ou deixar de ser falso. Mas mantém o seu rastro de historicidade. Mas também existem enunciados amplamente verdadeiros, e outros amplamente falsos, sem qualquer confusão ou falseabilidade.
Também é correto dizer que a falseabilidade das verdades é necessária para a mudança do mundo, para melhor ou para pior.
Cometamos algumas violências dando alguns exemplos. O enunciado a liberdade é melhor do que a servidão é sempre verdadeiro. Mas o enunciado a democracia é melhor do que a tirania, permite uma série de falseabilidades. O que nos permite dizer que algumas democracias são mais verdadeiras do que outras, ou tomarmos critérios distintos para avaliar democracias de trajetórias diferentes. Não somos relativistas ao dizer que por critérios diferentes a democracia francesa possa ser melhor do que a estadunidense. E isso não torna o conceito de verdade menos rigoroso, mas percebemos que a especificidade do enunciado nos exige ser mais inteligentes do que com enunciados mais gerais.
O racismo é sempre falso. As tentativas de relativização do racismo ou o seu contextualismo procuram falsificar o valor da igualdade, por pílulas humilhantes de integração. O racismo presente na obra de Monteiro Lobato, seja nos livros para adultos, ou nos escritos para o público infanto-juvenil também é falso. O racismo na obra de Lobato não pode ser amenizado. Mas não existe racismo na obra de Lobato, apenas quanto ele trata de negros. As teses racistas de Lobato decorrem de uma leitura vagabunda que empreendeu da tradição pseudocientífica da eugenia. Pode-se dizer que é o que há de menos original em suas obras. Lobato sempre foi afeito ao procedimento literário da mimesis. Ele traduzia muitos autores franceses e anglo-americanos, e, na tradução, fazia com que os personagens, vindos com a leitura, passassem a existir de modo autêntico em seus livros. Não só os personagens históricos dos livros para adultos, como quando cria para si e para outrem o personagem do brasileiro à busca de autonomia energética para o seu país, quanto quando coloca os personagens do sítio para dialogar com Peter Pan.
A tradução lobatiana é uma das gêneses de sua incorporação dos personagens. A outra é a invenção de personagem respondendo a um problema social específico. No caso da tradução, ele toma personagens que em suas circunstâncias originais eram apenas personagens, e os passa a utilizar para defender conceitos. Ainda que exista alguma semelhança com os originais traduzidos, a incorporação promovida por Lobato, faz aparecer um personagem que não é bem personagem, e um conceito público, que não é bem conceito. A prática de Lobato, em toda a sua obra, de pensar por personagens conceituais é o principal operador de sua genialidade autoral política. Mas tal não acontecia com o eugenismo. As frases mais escandalosas de Lobato sobre o eugenismo estão na sua correspondência. Mas isso não lhe retira nenhuma responsabilidade. E o eugenismo aparece na obra de Lobato tal com está nas malfadadas fontes originais lidas de modo idiota. O servilismo de Lobato com relação ao eugenismo é muito semelhante aquele praticado por Oliveira Vianna, de quem Lobato publicou o Populações Meridionais do Brasil. Eles sabem, mas não pensam, bem o que estão falando e repetem como papagaios. Inclusive nas cartas que trocam, disponíveis, as recebidas por Vianna, na Casa de Oliveira Vianna em Niterói.
O racismo de Lobato, todavia, é distinto de sua preocupação com o imaginário negro e mestiço. Por certo, que o racismo de Lobato é substituído em sua obra por coisas muito melhores. Ele não é um racista com preocupações de consistência em suas afirmações. Mas não é o racismo que faz com que Lobato promova o Inquérito do Saci. Nesse ele recolhe cartas enviadas ao jornal Estado de São Paulo, uma vez os leitores provocados a fazê-lo, nas quais manifestam as suas representações do Saci. Os adjetivos com relação às especificidades fisionômicas dos negros são abundantes. Mas não é a certeza da superioridade dos brancos com relação aos negros que está em questão, mas certa forma de falar denunciadora de uma prática de desigualdade. Em função das cartas que recebe, Lobato traça, em virtude do seu interesse como crítico de arte, qual seria a representação do Saci. Uma das cartas enviadas é do próprio Saci, corrigindo algumas incorreções narrativas dos assustados leitores. Ora, o Saci não é uma representação racista. O Saci é o Saci. Filho, é certo, de uma circunstância de desigualdade.
Ainda que não haja a vontade de fazê-lo, Lobato e Oliveira Vianna inauguraram um racismo inteiramente brasileiro. Não havia vontade de incorporação, essa originalidade é simplesmente acidental e só pode ser percebida de modo topológico. Os racismos que não são tipicamente brasileiros podem ser descritos da seguinte forma: i. Aquele racismo que diz que brancos são superiores aos negros e por isso não podem viver entre negros e ii. Aquele racismo que diz que brancos são superiores aos negros, mas que podem viver entre negros desde que orientem a civilização por modos civilizacionais brancos, mas sem miscigenação. Gilberto Freyre dá origem ao primeiro racismo com alguns elementos tipicamente brasileiros, mas ainda não se pode falar que seja inteiramente brasileiro, porque apenas acrescenta, ao tipo ii, a possibilidade da miscigenação.
Mas é claro que Freyre o faz com um brilhantismo inigualável. Ainda que considere a necessidade da estrutura social branca, para defender a miscigenação, mostra o que essa, de fato, tem de boa. Não só o atraente sadismo-masoquismo brasileiro, mas o adensamento afetivo das relações sociais por sobre a estrutura branca. A miscigenação, como preserva uma estrutura branca, é orientada pelo elemento branco masculino a se miscigenar com as mulheres negras. Uma vez a miscigenação instaurada, sempre do mais branco, princípio-ativo, para o mais negro, princípio-negativo. A tendência sendo estrutural, o branco não precisa ser branco na pele, ele pode ser branco pela ocupação de um lugar estrutural branco, como na miscigenação do mais rico com o mais pobre. Tal direção sempre com ganhos para a afetividade de ambos. O racismo de Freyre é estruturalmente estrangeiro, mas completado por uma dramaturgia brasileira. Para não se falar no açúcar, na rede de dormir etc.
Não só o racismo tipicamente brasileiro é acidental em Lobato e Vianna, como também é acidental para o pensamento social brasileiro. Não há nenhuma defesa da miscigenação, existe um profundo desconforto com ela. Mas existe a percepção de que estamos diante de um fato: a miscigenação existe e alterou a estrutura da nossa sociedade. Julgam no exercício do racismo que é melhor que a miscigenação não tivesse existido. Freyre partiria de uma premissa falsa. Não existe sociedade miscigenada de estrutura civilizacional branca. A nossa estrutura social, segundo uma constatação trágica, gostemos ou não, tornou-se outra. É com essa inflexão que Lobato e Vianna inauguram o racismo tipicamente brasileiro.
Guerreiro Ramos é quem percebe, atento ao pensamento de Vianna, que de modo acidental, em toda a sua acrítica repetição de eugenismo, atrelada que era, mas não de modo necessário, em outra chave, a uma rigorosa teoria social de matriz anglo-saxão, estava presente a noção de que as estruturas acompanham a sociabilidade. Elas se alteram com o “elemento de cor”. Ele é instituinte da nossa sociabilidade. Apesar de todas as besteiras eugenistas propaladas por Vianna e Lobato, acertam no que não viram, ao contrário do infeliz dardo amassado lançado por Freyre. Se Freyre nos concilia com o nosso sadismo originário, Vianna e Lobato nos mostram que a despeito mesmo do nosso desagrado com a miscigenação, não temos controle sobre aquilo que somos, aquilo que somos se institui a despeito da nossa vontade. Cabe, portanto, lidar com a essa instituição.
O racismo de Lobato não está no Barnabé e na tia Nastácia. Também não está no Inquérito do Saci. Não está nos adjetivos dados por Emília. O racismo de Lobato é sobretudo epistolar. Como quando nas correspondências com Godofredo Rangel, reunidas com o título A Barca de Gleyre, comenta do seu sentimento de desagrado ao ver os mestiços de traços grossos, sujos, de modos horrendos, a manifestar, pela aparência, que amulatam o elemento branco, além de serem homens mutilados por acidentes ou por más-formações. Não há quem duvide do desprezível asco sentido por Lobato ao ver os mulatos mal-formados e mutilados. Lobato sente uma forte repulsa sexual aos mulatos. Podemos arriscar que também fosse o sentimento de Vianna. Repulsa sexual essa ausente em Freyre, pelo menos no que concerne a relação entre brancos e negras, brancos e negros e de brancas e negras.
O afetamento moral de Lobato com os experimentos morais descritos em seus contos em que negros são maltratados, elemento formador da nossa simpatia, não o absolve dessa repulsão sexual. Mas para vencê-lo enquanto racista é preciso vê-lo enquanto racista, e, até agora, parece que vimos pouco ou nada, ou vimos pouco e não entendemos nada. Se não atentarmos para o racismo de Lobato, para a sua crueldade particular, muito mais sutil e verdadeira do que aquela em Freyre, não seremos capazes de impedir a instituição contemporânea dos modos de racismo que ele já denunciava. Cabe-nos saber, por que Lobato, com a sua grandeza, foi tão pequeno em seu racismo. A sexualidade é uma chave de compreensão. É preciso alguma frieza para olhar duramente para esse racismo sexual que nos é constitutivo, e, ultrapassar a sua crueldade.
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Cesar Kiraly é professor de Teoria Política e Pensamento Social Brasileiro no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense. www.cesarkiraly.com