Minha caiçara tia caipira
Por Renato Teixeira
Tia Heloisa, esposa de meu falecido tio Waldemar, aquele que colecionava Seleções, é uma pessoa muito especial. Escreveu um livro chamado “A saga de uma caipira em terra caiçara de Anchieta” que é uma verdadeira obra prima, não só pelo texto, por sinal muito parecido com o jeito de Heloisa falar e se expressar, como também pelo conteúdo histórico que narra momentos felizes de um Brasil sereno, pescador, caipira que não existe mais.
As gerações que vieram a seguir mudaram o texto cultural ao qual eu e todas as gerações que me antecederam estávamos acostumadas e elaboraram um País novo, com uma outra linguagem, outra música, outra literatura, outra gente.
O livro de minha tia ganha muita importância quando consegue resgatar um Brasil que deixou de ser. Heloisa viveu situações impensáveis nos tempos de hoje e gerou um tipo de relacionamento social fundamentado na fraternidade que as necessidades impunham aos habitantes daquela Ubatubinha com onze quarteirões.
Órfã de pai e mãe aos onze anos de idade em Lorena, onde nasceu filha de um carteiro e de uma mulher chamada Messias, Heloísa foi acolhida pelas irmãs reliosas que dirigiam o Bom Conselho que a criaram por cinco anos sem nenhum custo.
No colégio minha tia ficou amiga de Nancy Guizard, filha de Raul, um dos homens mais ricos do Vale, e essa amizade, que durou até o fim da vida de Nancy, deu à Heloisa um apoio fundamental dentro dos muros do colégio onde as freiras se viram na obrigação de avisar a todas as famílias das alunas que Heloísa era filha de pais tuberculosos. Muitas se afastaram, menos Nancy.
Quando chegou a Ubatuba em 1947, minha tia viveu o conflito de ter que abdicar de uma cidade como Taubaté, já composta e com uma vida cultural bem estruturada, para viver num lugar mínimo, junto de um povo que falava diferente, pensava diferente, reagia diferente. Heloísa comenta que mesmo estando distante apenas 90 km do Vale, o litoral norte parecia outro país.
Não demorou muito para que o espírito de Heloísa entendesse que ali sim, perto daquele mar e daquele céu chuvoso, estava sua missão na terra. Ali ela seria atriz e cantora a seu modo e seu palco iria além do perímetro urbano. Foi dar aulas nas praias distantes, aonde se chegava apenas por mar.
Eu acredito fundamentalmente na grandeza da municipalidade. O município é uma porta para o mundo e dentro dele tudo que acontece tem importância global. A repercussão histórica da chegada de Heloisa Maria Salles Teixeira a Ubatuba é tão significativa quanto a chegada da corte portuguesa a Salvador. A diferença está apenas nas dimensões dos fatos e na repercussão. Os dois acontecimentos, entretanto, criaram fatos e descendências, interferiram nos rumos da sociedade e, principalmente, acrescentaram conteúdo na vida das pessoas.
Lindo livro de minha tia que ao contrário do seu sobrinho aqui, começou caipira e acabou caiçara.
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Publicado originalmente na edição 591 do Jornal Contato