Golpe de 64 – 50 anos depois: Uma lápide para Wilson Silva!
Assassinado e reduzido a cinzas por agentes da ditadura em 1974, juntamente com esposa Ana Rosa Kucinski, Wilson retorna, por meio do depoimento de um colega e amigo da terra de Lobato, para incomodar aqueles que silenciaram e se acomodaram diante da violência e do arbítrio que marcaram o País de 1964 a 1985
por Marcos Barbosa Vasques
Eu cursava o 1.ª ano do curso científico no glorioso Colégio Estadual e Escola Normal Monteiro Lobato, o Estadão, que havia recentemente mudado da Rua Visconde do Rio Branco para a Rua Prof. Clóvis Winther, 625 – Jardim Maria Augusta. Corria o ano de 1959.
Nosso professor de Desenho Geométrico, Prof. Fábio Moura, figura emblemática do Colégio, num determinado dia, estabeleceu que a nossa tarefa consistiria em fazer um desenho livre, a critério de cada um. E foi nesse dia que notei pela primeira vez o Wilson Silva, embora fôssemos alunos da mesma classe. Ele apresentou o seu desenho: uma lápide num cemitério onde estava escrito “Aqui jaz Wilson Silva”.
O desenho provocou uma enorme comoção na nossa sala. Logo se espalhou por todo o Colégio, pois, para aquela época de uma sociedade tão conservadora como a de Taubaté, a sua ideia rompia com muitos dos sagrados valores que a permeavam.
Lembro bem que na hora do recreio todos da nossa sala o cercaram para saber o porquê da ideia contida no desenho. Se a memória não me falha, ele argumentou que, afinal, todos nós um dia iríamos morrer e, portanto, o seu desenho nada tinha de original, mas apenas retratava um fato que, mais dia menos dia, todos nós teríamos de enfrentar.
Fiquei muito impressionado com a franqueza e a visão do Wilson Silva, que bateu de frente com os cânones que moldavam a minha forma de ver a vida, até então. Mal sabia ele, no entanto, que a vida não lhe permitiria, no futuro, que tivesse uma lápide na qual os seus familiares viessem pranteá-lo, por força de arraigado valor que desde tempos imemoriais instalou-se na cultura ocidental no sentido de que é preciso venerar “a religião doméstica”.
Eu saí de Taubaté no final daquele ano e nunca mais tive notícias do Wilson Silva.
Depois de mil peripécias, fui trabalhar na Companhia Telefônica Brasileira (CTB), na Rua 7de Abril, no Centro de São Paulo. E conclui o curso de engenharia metalurgista da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, assumindo, à época, uma função de gerência no então recém-criado Departamento de Sistemas.
Um dia, dirigi-me para uma reunião neste departamento e dei de cara com o Wilson Silva. Não acreditei. Era ele mesmo, com o mesmo jeitão. Meio vesgo, com aquela vasta cabeleira esvoaçante, de pouco riso e de pouca fala. Ficamos um tempão conversando, nos atualizando e fiquei sabendo que ele havia concluído o curso de física na Universidade de São Paulo, quase ao mesmo tempo em que eu concluía o de engenharia; que havia se casado e que na então CTB era o analista de sistemas responsável pelo sistema contábil da empresa.
Depois fiquei sabendo que o Wilson Silva gozava de um enorme respeito profissional pelos seus colegas e superiores graças à sua notável inteligência. A contabilidade da então CTB era uma “caixa preta” que resistia heroicamente a qualquer esforço de automatização e foi o Wilson que conseguiu penetrá-la e automatizar as suas rotinas contábeis, “democratizando” os processos contábeis que eram “propriedade” exclusiva de poucas pessoas no então Departamento de Contabilidade.
Depois deste inusitado encontro, muitas vezes eu subia até a Divisão de Sistemas para conversar com ele. Em uma ocasião, lembrei-lhe do desenho que causara tanto furor no nosso Colégio. Para minha surpresa ele não se lembrava muito bem do que se tratava. Tive que lhe relembrar do fato do inesperado desenho que fizera, mas parece que o evento não lhe fora marcante, pois pouco, ou quase nada, lhe vinha à memória.
Depois de algum tempo, fiquei sabendo que ele não estava mais trabalhando na CTB. Achei estranho ele sair assim, sem mais nem menos. Mas, envolvido com mil problemas na época, não dei ao caso maior importância. Muitos anos depois, fui trabalhar na Telebrás, em Brasília, onde permaneci durante 7 anos e depois para a Embratel no Rio de Janeiro. Nessa época dois dos antigos gerentes da então CTB tinham se encontrado na Embratel e chamaram-me para uma conversa. Foi na ocasião que fiquei sabendo que a demissão do Wilson Silva não foi como havia sido divulgado na época.
Wilson Silva tinha uma grande preocupação com informações vindas de Brasília. Os dois gerentes,um dia, foram chamados pelo seu superior para lhes dizer que eles tinham que demitir o Wilson, de imediato e sem dizer o motivo. Era para simplesmente demiti-lo. Wilson foi comunicado da decisão, mas a sua preocupação era saber se a ordem viera de Brasília. É evidente que os seus gerentes imediatos sabiam, mas ocultaram-lhe o fato.
Depois soubemos que ele e a sua mulher haviam sido presos pelas forças da Revolução e nunca mais se soube do paradeiro de ambos. Para grande tristeza de todos aqueles que tiveram o privilégio de conviver com a brilhante inteligência do Wilson Silva, o qual tinha um pecado capital: pensava diferente, acreditava em outros valores, em outra sociedade mais justa e mais solidária.
Por que negar a um brasileiro este valor tão arraigado na nossa cultura um local em que a sua família possa pranteá-lo?
Que mal fez ele ao Brasil ao discordar daqueles que detinham o poder?
(Publicado Originalmente no Jornal Contato, nº 548)
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1 Comment
Marcos Barbosa Vasques, você saberia me dizer se o Wilson Silva fez o 3º Científico em São Paulo? Na Escola Estadual Macedo Soares, rua Albuquerque Lins, Barra Funda. Tenho a lembrança de termos sido alunos da Ana Rosa Kucinski nessa escola. Ela era nossa prof. de Química em 1965. Os traços parecem bater: alto, bastante cabelo, calado.
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