Uma reflexão sobre o tempo
Texto de Rachel Abdalla
O historiador Eric Hobsbawm elaborou uma interessante análise do século XX, na obra “A Era dos extremos”, em que afirma que esse foi um século breve. Desde o início do século XX o tempo parece correr mais rápido, e eu demorei tanto tempo para conseguir escrever esse texto que me pareceu pertinente começar por uma reflexão sobre essa questão tão relevante para os historiadores.
Ao longo do tempo, o tempo tornou-se para mim um cacoete profissional e um fardo pessoal. O historiador trabalha com o tempo, não mais restrito ao passado, mas agora numa perspectiva mais ampla, abrangendo o presente e o futuro, conforme asseverou o historiador francês Marc Bloch, quando postulou que “A História é a ciência dos homens no tempo”.
O tempo tem tantas dimensões quantas o homem foi capaz de catalogar. O Tempo na História, o Tempo da História, a História do Tempo, a História no Tempo. Para o historiador, revestiu-se de um caráter associado à profissão, já que o objeto da História é composto pelas ações que o homem realiza ao longo do tempo. Além disso, não se pode esquecer que o próprio historiador está inserido no tempo; ele produz, escreve a História no seu tempo presente. Assim, diz-se “o historiador e o seu tempo”, remetendo-o ao seu contexto. Ou, como disse há muito tempo um professor meu, que por sua vez disse que recebeu essa frase de um professor: o historiador e o seu oxigênio mental. Mas há nessa frase um termo que pode ainda ser alvo de reflexão: “seu”. Refere-se ao tempo do historiador numa perspectiva individual, pessoal. Fernand Braudel afirmou que “o historiador não sai jamais do tempo da história: esse tempo agarra-se ao seu pensamento, como a terra à enxada”.
A História é uma dimensão do tempo como ritmo de organização da vida coletiva, ordenando e sequenciando, cotidianamente, as ações individuais e sociais. Por exemplo, os camponeses são regidos pelo “tempo da natureza”, os operários, pelo “tempo da fábrica”. Assim, para mim e para tantos outros historiadores desse nosso louco período chamado pós-moderno, o tempo tornou-se um cacoete pessoal, pois o nosso tempo é realmente muito escasso. Hoje, fala-se em “historiador sem tempo”. Essa falta de tempo, ou o tempo que escorre pelos nossos dedos e nos dá a sensação de não conseguirmos fazer nada, ou pelo menos nada do que deveríamos ou gostaríamos, não é prerrogativa dos historiadores, mas para nós o peso é maior. Dói. São tantas demandas, tantas exigências, tantos projetos interessantes, tantas possibilidades e um só tempo, uma só pessoa para dar conta de tudo no devido tempo. A equação não bate, não equilibra. Isso não é uma aula, é um desabafo!
Dizem que o universo conspira, mas nem todos os historiadores, céticos por dever de ofício e, ao mesmo tempo, místicos pela vivencia e pelas experiências, acreditam nisso. Se eu acredito? Oscilo, acompanho as evidências. O fato é que neste “momento-ilha”, houve uma parada obrigatória. Uma costela quebrada pode ser um recado do universo: pare! Mas os historiadores não param, não podem parar. Aliás, parar é possível? Podemos rearranjar o tempo, remanejar, achar um tempo dentro do tempo. Hierarquizar as prioridades.
Bem, vamos que vamos, pois como alguém já disse: o tempo urge. Sim, é a urgência do tempo que nos move. E os professores? Bem, para esses, para nós, o final do ano é categoricamente uma loucura, é quando as demandas se avolumam exponencialmente, no inversamente contrário ao da energia para realizá-las. Professor que se preze sofre de “novembrite”, ou seja, fica doente no mês de novembro. Nenhum médico ainda foi capaz de diagnosticar, mas o motivo eu lhes digo: é falta de tempo.
A eterna novidade aqui é que eu continuo sem tempo. Outras virão, mas essa me define e me apresenta. Mas se é que se pode falar em verdade, uma verdade verdadeira em relação à questão de gerência do tempo, e os que me conhecem podem atestar, é que aqueles que não têm tempo são justamente os que arranjam tempo para tudo. Eis a arte de otimizar o próprio tempo! Realmente uma arte, pois é preciso habilidade e, antes de tudo, disposição. Como o meu trabalho é diretamente vinculado ao tempo, penso que, se não fosse historiadora, eu sofreria mais, pois teria o cacoete e não teria ferramentas para trabalhar com ele. O título desta coluna se refere, de certa forma, a esta questão: as novidades são eternas desde que reatualizadas ao longo do tempo. Toda novidade é eterna, se guardada na memória.
Há alguns anos, meu pai, Joel Abdala, professor de Língua Portuguesa, escreveu um texto sobre um poeta carioca: Laurindo José da Silva Rabelo (1826-1864), que era mulato e tinha sangue de cigano, nasceu e cresceu na pobreza, mas soube elevar-se da sua origem e condição humilde à situação de médico do exército e professor na Escola Militar. Era conhecido por “poeta lagartixa”, por causa do seu físico magro e desaprumado, desengonçado. O “Bocage brasileiro”, como também ficou conhecido é um dos patronos da Academia Brasileira de Letras e escreveu esse soneto sobre o tempo que me pareceu pertinente a essa reflexão:
Deus pede escrita a conta de meu tempo,
É forçoso do tempo já dar conta;
Mas como dar, em tempo, tanta conta,
Eu que gastei, sem conta, tanto tempo?
Para ter minha conta feita a tempo
Dado me foi bem tempo e não fiz conta.
Não quis sobrando tempo, fazer conta;
Quero hoje fazer conta e falta tempo.
Ó vós que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis esse tempo em passa-tempo.
Cuidai, enquanto é tempo, em fazer conta.
Mas oh! Se os que contam com seu tempo
Fizessem desse tempo alguma conta,
Não choravam como eu, o não ter tempo.
Dúvida, questão, crise? Dúvidas, questões, e principalmente crises, são sempre bem-vindas, afinal a vida sem crise não teria graça. Neste momento a minha crise é em relação ao tempo, e eu a compartilho com vocês, pois estamos todos aqui respirando o mesmo oxigênio mental e sofrendo com a falta de tempo.
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Rachel Duarte Abdala é professora de Teoria da História na Universidade de Taubaté
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1 Comment
Rachel,
fiquei “sem fôlego” ao ler seu texto. Duas vezes: uma por admiração; está lindo!…e outra pela “falta de tempo” que ele induz. Li correndo…..as palavras atropelando o raciocínio!!…Quando me dei conta de toda essa correria sabe o fiz?…mentalizei um professor africano debaixo de um baobá cercado de seus pequeninos discÍpulos. Essa imagem acalmou minha “correria”….rsrsrsrs O baobá pode viver mais de 2.000 anos….o professor – não tem relógio…a duração da aula é medida pelo relógio biológico; esse SIM – deve ser respeitado!!! …. e os ensinamentos são ancestrais!!!
Minha linda menina – uma costela quebrada é sim, uma badalada do seu relógio biológico pedindo uma pausa, pedindo um fôlego!! Esqueça um pouco a “visão ocidental” sobre o tempo e desfrute mais da sombra de um baobá!!
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