A FOGUEIRA, O FRANGO VOADOR! E… NHÁ MARIA PETISCO

 A FOGUEIRA, O FRANGO VOADOR! E… NHÁ MARIA PETISCO

“Lutei para escapar da infância o mais cedo possível.
E assim que consegui, voltei correndo pra ela.”

Orson Welles                     

 Por Celio Moreira

As cores afogueadas do sol esmaeciam além do horizonte e transformavam a Mantiqueira numa imensa cortina negra estendida sobre o Vale. As noites prometiam chegar bem frias naquele mês de junho de 1938.  Então, porque não aproveitar e acender uma fogueira?! Opa! Seria muito bom!…  Já antevia o prazer de pular sobre ela, escutar o explodir das bombinhas, riscar palitos de fósforo colorido, estrelinhas; sem faltar o “traque”, vendido em tiras e conhecido pela garotada como “PUM-DE-VÉIA”.  Ah!…Este não podia faltar!

Há três anos curtia com a família a nova casa da Rua Barão e já havia granjeado um bom relacionamento com a vizinhança, especialmente a garotada de meu porte e, de quebra, alguns marmanjos.  Contudo, ainda guardava saudade de nosso último endereço na Pedro Costa: a velha casa onde ficou minha bela e pródiga laranjeira que sombreava boa parte do quintal. As tábuas do assoalho, surradas pelo tempo, já não se encostavam, deixando transparecer um porão escuro que, muito em breve, seria foco de minha curiosidade.

laranjal

Não demorou muito para olhar por uma das frestas e descobrir, entre alegre e desapontado, onde foram parar os discos coloridos de papelão que o senhor GULA deixou que os pegasse em meio a tantos outros deixados atrás do palco do Centro Recreativo. Gula era muito popular na cidade e no Clube da Rua Visconde, onde trabalhava; meu pai respondia como gerente e nós (Cid e eu), os donos, naturalmente! Os discos tinham decorado os salões no último Carnaval. Cheguei a pensar que voltariam para o rol dos meus brinquedos, mas foram parar ali, quem sabe, para sempre e com as cores indistintas pela ausência de luz.

Minha concentração interrompeu-se naquele doce e recente passado quando mamãe chamava por mim da janela que dava para o quintal.

– Que está havendo, filho? Estou achando você meio estranho?

– … Ah, mãe, é que, desde ontem estou pensando em fazer uma fogueirinha, até ia pedir pra senhora…

– Tudo bem, filho, já pediu!

– E a senhora deixa?!

– Deixo, sim!

– Oba! Então, já vou separar alguma coisa…

– Espera aí! Antes, você vai levar um bilhete à casa de Tio Zeca, está bem?

– Levo sim, mãe, na casa do tio, da tia, onde a senhora quiser! É pra ir agora?

– Calma! Ainda vou escrever!

Mamãe gostava de escrever, sabe? Lembro quando Cid estava começando no rádio e narrou “O Milagre da Noite de Natal”, crônica assinada por ela. Muitas cartas chegaram à emissora. Queriam reprise. Falava do drama vivido por uma pobre viúva, sem condições de atender a filha que, agonizante em seu leito, pedia pela boneca que viu na vitrina de uma loja de brinquedo, pouco antes de adoecer. Tudo descrito com riqueza de detalhes, numa história envolvente que terminava muito bem com a chegada de Papai Noel dando solução pra todos os problemas: a menina sarou, ganhou a boneca que tanto queria e a viúva pulava de contente abraçada ao bom velhinho!

A reprise foi atendida cinco anos após, em 1951, quando fui admitido na Rádio Difusora como “speaker”. Os locutores da época não abriam mão deste epíteto! Usavam-no tal como um título de distinção! Eu sou “Speaker”!

Mas, no quintal, enquanto esperava por minha mãe, namorava a matéria prima que iluminava todos os dias o maravilhoso fogão de nossa casa. Ah!… Como eu gostaria de queimar toda essa lenha! Completamente absorto, via as labaredas ganhando altura, rasgando o céu e nem dei conta da aproximação de mamãe com o bilhete.  Vê que meus olhos estão focados na lenha empilhada e pergunta, acentuando palavra por palavra: – Espero- que- não- queira –usar – toda- a lenha…! Ou… quer?! – Não, mãe, eu só vou pegar, claro, se a senhora deixar, um ou outro pauzinho, uns cavaquinhos… – Tá bem, Célio, Mas, não vamos exagerar, hein?! Agora… um pezinho lá e outro cá! Entregou-me o bilhete e depositou algumas moedas no bolso de minha camisa. Uma de 400 e duas amarelinhas de quinhentos reis. Nossa! Que dinheirão! Obrigado, mãe! Beijei seu rosto e saí para cumprir a ordem, certo de que nada poderia esconder daquela que até meus pensamentos adivinhava!

Considerava que os pais não deviam ficar preocupados quando os filhos partiam pra rua. O movimento de automóveis, praticamente nulo, jamais podia colocar em cheque a vida de quem quer que fosse. As ruas eram nada mais que campos propícios para a prática de boas “peladas”!

Satisfeito com o apoio maternal ao “projeto fogueira”, ganhei logo a Nove de Julho e atingi o Bosque. Meu Tio morava perto, quase no final da rua, em frente ao campo do Esporte Clube Taubaté. Anos mais tarde, toda vez que me aproximava de sua casa, sentia arrepios! Havia descoberto, um pouco mais acima, à esquerda e ao lado do Convento, o grande portão do Cemitério da Ordem Terceira. Pensava no dia que tivesse de passar por ele, bem quieto, como passou minha vovó Francisca!

Quando a tarde chegou, papai pediu pra gente ir ao centro comprar frango assado. Um belo reforço, sem dúvida, para se juntar ao arroz e a paçoca de pilão, sobras do almoço! E já que vamos à cidade, aproveito e compro uns “traques”!

traque

  – Podemos ir de bicicleta? – pergunta Cid.

O velho guardava tremendo ciúme da “BIANCHI MILANO” que todos os dias, invariavelmente, recebia a carícia de uma flanelinha de cabo a rabo! E quando alguém perguntava sobre a qualidade da marca, papai impostava a voz:

– É italiana, uma das melhores do mundo!

Achei que não fosse deixar. Porém, depois de breve pausa e uma coçadinha na têmpora, sentenciou:

– Tudo bem! Cuidado!… Os dois! Não quero que se machuquem! E se acontecer alguma coisa com a BIANCHI o couro vai comer!

Trememos, porque meu irmão ainda não tinha suficiente estatura para alcançar os pedais. Nem sei como se ajeitava no quadro para pedalar! Quem navegava sentado no selim era eu, segurando as compras, fazendo a vez do bagageiro! E lá fomos nós, Barão acima, com destino ao restaurante da Praça Dom Epaminondas. O concorrido “pitéu” era oferecido quentinho no final das tardes e quem pretendesse saborear a iguaria tinha de suportar boa espera.

Aproveitando que meu irmão aguardava a segunda fornada, fui comprar os “traques”. Tempo em que a noite começou a cair e tratamos de voltar.

Enquanto Cid pedalava, eu estava agarrado ao embrulho. Dividia com o vento o bom aroma desprendido de seu interior! Pegamos a Souza Alves, na contra mão e pude comprovar o naufrágio da tese que defendia! As ruas eram, sim, perigosas! Eis que um caminhão surge à nossa frente com as luzes apagadas! Meu irmão desvia e aperta o freio, justamente o que havia de melhor na “Bianchi”! Nossa! Parada instantânea! O frango saiu voando de minhas mãos e eu fui junto, passando sobre a cabeça do Cid. Caí em pé e me esborrachei no calçamento em seguida! A bicicleta, com uma das rodas ainda girando, pousava ilesa sobre o corpo do mano. Ufa, ainda bem!  E o frango, Minha Nossa Senhora?! Rolou e foi parar longe, bem em frente à casa de dona Beatriz, a professora! Corri para apanhá-lo antes da chegada de um “vira-lata” que já vinha bufando em sua direção! !  Ah, não! Olha o embrulho, Cid!  – Rasgou?! Rasgou, sim! Batemos com a mão, sopramos várias vezes para desgrudar possíveis corpos estranhos no “penoso” e voltamos a montar na melhor do mundo. O cachorro, ainda com esperança de se associar ao pitéu, nos seguiu até abrir o bico!

Pouco depois, à mesa, enquanto disputava com minha irmã “o jogador” – aquele ossinho torrado do peito do frango – ouvimos papai resmungar: – Já começaram a relaxar! Tenho certeza que era pedra aquilo que mordi na coxinha! Eu e Cid mergulhamos o riso sob a mesa para evitar que o “couro comesse”!

bianchi
Detalhe de uma Bianchi Milano

Não quis esperar o doce de abóbora com coco, nem o queijo da Fazenda CATAGUÁ, presente que Tio Zeca me entregou ao voltar de sua casa. Nada podia superar o prazer de acender uma fogueira! Era a primeira vez.  E tem que ser agora! Convidei CÉIA, minha irmã. – Depois, mano. Vou arrumar a cozinha pra mamãe.

Peguei fósforos, algum papel, boa parte da lenha que pude separar e fui pra frente da casa. Estava afoito! Agachado na rua, próximo ao portão e à beira da calçada, comecei a cruzar os pedaços de lenha liberados para o grande sucesso. Sua iminência sacudia meus nervos! Também o vento conspirava, tratando de soprar e apagar cada palito que acendia! Quase a caixa inteira, até conseguir inflamar o papel e ficar admirando o fogo caminhar lentamente pela madeira ressequida e ganhar corpo, cada vez mais!  Então, seguramente mais feliz que a viúva na crônica que minha mãe escreveu, sorri e comecei a esfregar uns traques na calçada. TRAC, TRAC, PUM! Que beleza! Isso que é festa! O “pum de veia” é bom mesmo! Bem que o homem falou! Daqui a pouco muita gente vai ficar babando!

Enfim, Nhá Maria Petisco!

Sabia que mais cedo ou mais tarde teria que dispor de mais combustível para garantir a sobrevivência de minha obra prima e fui apanhar o restinho da lenha no fundo do quintal.

De volta, uma cena estranha, surreal, me fez estancar no portão! Jamais vou esquecer! CÉIA, que havia seguido meus passos quando passei próximo à cozinha, viu quando atirei a lenha pra dentro do jardim, visivelmente irritado!

– To chegando, mano. O que está havendo?!

– Olha o que essa mulher tá fazendo!

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Minha irmã só disse: “Nossa!” e voltou correndo pra dentro de casa! Pasmem os que forem de pasmar! A velha, com uma das pernas na rua e outra sobre o meio fio, estava urinando na minha fogueira! E não era “xixizinho”! Parecia tromba d’água! O vestido dela estufou com a fumaça! Pensei que fosse subir igual balão?! Quando a “bica” da velha secou e não havia uma única brasa acesa, exclamei:

 – a senhora não tem vergonha de fazer isso na rua?

– Ah, meu filho, vivo apagando tanto fogo por aí, nem ligo!

– A senhora fez xixi na minha fogueira! A Senhora é feia, viu?! FEEEIIIA!

Meu repertório de palavrões ainda incompleto, não deu pra machucar a velha, como pretendia. Mas a palavra “feia”, com a ênfase que imprimi, causou algum dano, o suficiente para que chispasse de minha frente!

– Já pra dentro, Célio! Vamos! Era a voz de meu pai que ecoava da varanda como um trovão! Tomei banho e fui dormir pra nunca mais sonhar com fogueira!

Nhá Maria Petisco, que não era tão velha assim – faltava-lhe trato – permaneceu boa temporada por nossas bandas e sumiu depois que o Exército embarcou para a Itália. Será que ela acompanhou os soldados? Ainda não conseguia entender o significado da palavra “petisco” como apêndice de seu nome, nem porque apagou minha fogueira daquele jeito!

Certa vez, nosso amigo “Madruga”, morador do asilo, veio correndo avisar que ela estava nas imediações da Chácara do Visconde. Paramos imediatamente a “pelada” e corremos todos pra lá.

Fomos encontrar Nhá Maria Petisco sentada na relva verdinha que se espalhava à margem da estrada de ferro.  Ao seu lado havia uma bolsa grande, comprimida com roupas bem surradas e outra, pouco menor, parecia conter utensílios domésticos. Apesar de sua gasta aparência, nossa aproximação parece ter atiçado algum glamour pregado no fundo de sua alma. Como por encanto, ela se transfigurou! Passou a assumir ares de uma grande artista, pronta para nos oferecer um magistral espetáculo! E nosso queixo foi desabando diante do que passamos a assistir! Da ponta da língua de cada um as perguntas começaram a surgir: O que é isso, Nhá Maria? E aquilo, ali?  Hiííííí…!

hoo

Ela sorria, de orelha a orelha, pouco importando se as falhas de dentes aparecessem. A plateia estava em suas mãos e ela respondia as indagações com o mais absoluto e desavergonhado pudor. Queria satisfazer a todos!  Talvez, pressagiando que seria alvo de grande admiração naquele dia, seu vestido, rasgado em lugares indevidos, ultrapassava os limites da transparência! Não havia segredo na inusitada encenação que permaneceu divertida e insinuante do primeiro ao último minuto!

De repente, toda atenção se transfere para o garoto “Madruga”. Ele estava com os olhos esbugalhados e seus lábios grossos tremiam, ensaiando estranhíssima risada! Parecia possuído! Envolvidos naquele quadro extranatural, começamos a rir sem parar!  Nhá Maria Petisco não gostou nada, nada!  Espumou! Ficou furiosa e nos escorraçou com pedradas e os mais variados palavrões que, mais tarde, viriam a melhorar meu repertório!

Até hoje fico matutando o que andou pela cabeça de meus amigos diante daquele inesperado e aberrante espetáculo. Eu, pelo menos, o acolhi como a brilhante primeira aula de anatomia ministrada por Nhá Maria Petisco!

[box style=’info’]Celio Moreira
celioconhecido também como O Sombra, do Jornal de Vanguarda, é um dos grandes profissionais de comunicação da história do jornalismo nacional.

 

 

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