Quilombos: Identidade, Terra Firmada e Contemporaneidade.
Profª Ludmila Pena Fuzzi/ imagem-capa: acervo Revista ConsciênciaNet
No Brasil, a auto-atribuição de identidades étnicas tem se tornado uma questão importante nos últimos anos, por meio da organização política de grupos que reivindicam o reconhecimento de territórios que ocupam, como no caso dos povos indígenas e das chamadas comunidades remanescentes de quilombos.
Na Constituição de 1988, o conceito quilombo, antes apenas citado pela historiografia, apresenta uma nova significação, ao ser inscrito no artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias (ADCT), para conferir direitos territoriais aos remanescentes de quilombos que estejam ocupando terras, sendo-lhes garantida a titulação definitiva pelo Estado.
De acordo com REVEL (1989), quilombo ou remanescente de quilombo, são termos usados para conferir direitos territoriais que permitem, através de várias aproximações, desenhar uma cartografia inédita na atualidade, reinventando novas figuras do social. Portanto, a construção de uma identidade originária dos quilombos torna-se uma referência atualizada em diferentes situações etnográficas nas quais os grupos se mobilizam e orientam suas ações pela aplicação do artigo 68 do ADCT
Art. 68 – Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. (Ato das Disposições Transitórias)
Pode parecer paradoxal que os antropólogos, que marcaram suas distâncias e rupturas com a historiografia, tinham sido colocados no epicentro dos debates sobre quilombos e sobre a identificação daqueles qualificados como remanescentes de quilombos para fins de aplicação de preceito constitucional. O texto constitucional não evoca apenas uma Identidade Histórica, que pode ser assumida e acionada na forma da lei. De acordo com o texto, é preciso, sobretudo, que esses sujeitos históricos presumíveis existam no presente e tenham como condição básica o fato de ocupar uma terra que, por direito, deverá ser em seu nome titulada. Assim, qualquer invocação ao passado, deve corresponder a uma forma atual de existência, que pode realizar-se a partir de outros sistemas de relações que marcam seu lugar num universo social determinado.
SAHLINS (1990), nos mostra que tal aspecto presencial, focalizado pela legislação, tem levado antropólogos a seguir um princípio básico: o de “fazer o reconhecimento teórico e encontrar o lugar conceitual do passado no presente”. O fato de o pressuposto legal estar referido a um conjunto possível de indivíduos ou atores sociais organizados em conformidade com sua situação atual permite conceituá-los, sob uma perspectiva antropológica.
1.1 – A busca pela Identidade Quilombola
Para fundamentar teoricamente a atribuição de uma identidade quilombola a um grupo e, por extensão, garantir, ainda que formalmente, o seu acesso à terra trouxe à tona a necessidade de redimensionar o próprio conceito de quilombo, a fim de abarcar a gama variada de situações de ocupação de terras por grupos negros e ultrapassar, o que os historiadores e antropólogos chamam de fuga-resistência, instaurado no pensamento corrente quando se trata de caracterizar estas conformações sociais.
Atualmente as atribuições ainda seguem a primeira definição de Quilombo oferecida em 1740, ao rei de Portugal, através do Conselho Ultramarino: “toda habitação de negros fugidos, que se passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem achem pilões nele”. Este método é descritivo e ainda é aplicado de forma clássica entre muitos estudiosos conceituados. Os teóricos[1] atribuem aos quilombos um tempo histórico passado, cristalizando sua existência no período em que vigorou a escravidão no Brasil, além de caracterizarem-nos exclusivamente como expressão de negação do sistema escravista, aparecendo como espaços de resistência e de isolamento da população negra.
Apesar das pesquisas destes teóricos serem profícuas e originais, não contemplam a diversidade das relações entre escravos e sociedade escravocrata e nem as diferentes formas pelas quais os grupos negros apropriaram-se da terra. GOMES (1996) nos explicita que tal diversidade, ao forjar o conceito de “campo negro” (uma complexa rede social) permeada por aspectos multifacetados que envolveu, em determinadas regiões do Brasil, inúmeros movimentos sociais e práticas econômicas com interesses diversos.
Ao fazer uma crítica ao conceito de Quilombo, oferecido pelo Conselho Ultramarino, ALMEIDA (1999) mostra que aquela definição constitui-se basicamente de cinco elementos: 1) a fuga; 2) uma quantidade mínima de fugidos; 3) o isolamento geográfico, em locais de difícil acesso e mais próximos de uma natureza selvagem que da chamada civilização. 4) moradia habitual, referida no termo “rancho”; 5) autoconsumo e capacidade de reprodução, simbolizados na imagem do pilão de arroz. Para ele, com instrumentos da observação etnográfica:
Se pode reinterpretar criticamente o conceito e asseverar que a situação de quilombo existe onde há autonomia, existe onde há uma produção autônoma que não passa pelo grande proprietário ou pelo senhor de escravos como mediador efetivo, embora simbolicamente tal mediação passa ser estrategicamente mantida numa reapropriação do mito de “bom senhor”, tal como se detecta hoje em algumas situações de aforamento (ALMEIDA, 14-15:1999)
O autor exemplifica situações que contrariam esses cinco elementos da definição, como o caso do quilombo do Frechal, no Maranhão, localizado a cem metros da casa grande, ou casos em que o quilombo esteve na própria senzala, representado por formas de produção autônoma dos escravos que poderiam ocorrer, e de fato ocorriam, sobretudo em épocas de decadência de ciclos econômicos, fossem agrícolas ou de mineração. Vários trabalhos mais atualizados a respeito de comunidades negras com origem mais diretamente relacionadas à escravidão têm demonstrado que a economia interna desses grupos está longe de representar um aspecto isolado em relação às economias regionais da Colônia, do Império e da República. Em geral existiu, paralelamente à formação do aparato de perseguição aos fugitivos, uma rede de informação que ia desde as senzalas até muitos comerciantes locais. Estes últimos tinham grande interesse na manutenção desses grupos porque lucravam com as trocas de produtos agrícolas por produtos que não eram produzidos no interior do quilombo.
Não obstante esta integração das formas mais ou menos autônomas de atividades produtivas empreendidas pelos escravos à economia geral, é preciso ressaltar que o trabalho livre sobre a terra não garantiu, de forma alguma, o acesso dos alforriados a ela no momento posterior a abolição. Ao contrário, a exclusão do segmento populacional negro em relação à propriedade de terra foi posteriormente estabelecida por meio de uma série de atos do poder legislativo. Com a Lei de Terras, de 1850, o direito à terra calcado na posse por um direito auferido via registros cartoriais que comprovassem o domínio de uma dada porção de terra. O direito legítimo adquirido através da posse efetiva é uma noção de direito costumeiro, que até hoje regeu a relação do campesinato tradicional com a terra, incluindo os grupos de camponeses negros.
2. A Firmação da Identidade Atualmente
Para muitos teóricos, os grupos que hoje são considerados remanescentes de comunidades de quilombos se constituíram a partir de uma grande diversidade de processos, que incluem as fugas com ocupação de terras livres e geralmente isoladas, mas também as heranças, doações, recebimentos de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, a simples permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante a vigência do sistema escravocrata quanto após a sua extinção.
Dentro de uma visão ampliada, que considera as diversas origens e histórias destes grupos, uma denominação também é possível para estes agrupamentos identificados como remanascentes de quilombo seria a de “terras de preto”, ou “território negro”, tal como é utilizada por vários autores, que enfatizam a sua condição de coletividades camponesa, definida pelo compartilhamento de um território e de uma identidade.
A promulgação da instituição e a necessidade de regulamentação do Artigo 68, provocaram discussões de cunho técnico e acadêmico que levaram a algumas revisões de conceitos clássicos que dominavam a historiografia sobre a escravidão, instaurando a relativização e adequação dos critérios para se conceituar quilombo, de modo que a maioria dos grupos que hoje, efetivamente, reivindicam a titulação de suas terras, pudessem ser contemplados por esta categoria, uma vez demonstrada, por meio de estudos científicos, a existência de uma identidade social e étnica por eles compartilhadas, bem como a antiguidade da ocupação de suas terras e, ainda, suas práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar.
Assim, em consonância com o moderno conceito antropológico aqui disposto, a condição de remanescente de quilombo é também definida de forma dilatada e enfatiza os elementos identidade e território.
A situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos e é utilizado para designar um legado, uma herança cultural e material que lhe confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer um lugar específico. (GARCIA, in ANDRADE, 1997:47)
Este sentimento de pertença a um grupo e a uma terra é uma forma de expressão da identidade étnica e da territorialidade, construídas sempre em relação aos grupos com os quais os quilombolas se confrontam e se relacionam. Estes dois conceitos são fundamentais e está sempre inter-relacionado no caso das comunidades negras rurais, o que segundo GUSMÃO (1995:14), a presença e o interesse de brancos e negros sobre um mesmo espaço físico e social revela, no dizer de Bandeira, aspectos encobertos das relações raciais. Estes aspectos encobertos, aos quais a autora se refere, são a submissão e a dependência dos grupos negros em relação à sociedade inclusiva.
3. Considerações finais
Muitas pesquisas sobre populações camponesas no Brasil têm demonstrado a importância da relação entre território e parentesco. Nesta chave, o acesso à terra é garantido “pela via hereditária, isto quer dizer que alguém tem direito virtual de dono sobre a terra não simplesmente porque é um indivíduo, mas porque o é enquanto filho e herdeiro. Na definição da herança igualitária, assim, está imbricada uma definição estrita das relações de parentesco, seguindo o critério prioritário de filiação” (PAOLIELO, 1998:158)
Se, por um lado, temos territórios constituindo identidade de uma forma estrutural, apoiando-se em estruturas de parentesco, podemos ver que território também constitui identidade de uma forma bastante fluída, levando em conta a concepção de BARTH (1976) de flexibilidade dos grupos étnicos e, sobretudo, a ideia de que um grupo, confrontado por uma situação histórica peculiar, realça determinados traços culturais que julga relevantes em tal ocasião. É esse o caso da identidade quilombola, construída a partir da necessidade de lutar pela terra ao longo das últimas duas décadas.
Estamos diante a incorporação de identidade que, em decorrência de eventos históricos, introduzem novas relações de diferença, aos quais passam a ser fundamentais na luta dessas populações negras pelo direito de continuar ocupando e transmitindo às gerações vindouras o território conformado por diversas gerações de seus antepassados. Assim, podemos pensar as identidades não como sendo fixas, mas como identificação em curso, integrantes do processo histórico da modernidade, no qual concorrem velhos e novos processos de recontextualização e de particularização das identidades.
Um processo histórico de resistência, é evocado para constituir resistência hoje, praticamente como a reivindicação de uma continuidade desse mesmo processo. A identidade do negro é colocada como uma relação de diferença calcada na subalternidade e na diferença de classes.
[1] Artur Ramos (1953) e Edson Carneiro (1957)
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Ludmila Penna Fuzzi é professora de História e presidente do Instituto de Pesquisa Histórica e Ambiental Regional.
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