AS REINAÇÕES E A ABÓBORA DO CAULE DESCOLADO
Por Celio Moreira
Crianças irrequietas, sempre agitadas e com o dedo no gatilho para aprontar. Assim éramos nós, em contraste com a calma reinante numa cidade onde muitas doenças, hoje, facilmente tratáveis, não poupavam crianças, jovens e velhos.
Que fazer nesta tarde fria, década de 40 e ocaso do outono, quando já soprava um vento com prenúncio de inverno? Que tal entrar no bueiro, seguir pela galeria e ver o que acontece – propõe pintado, o intelectual da turma . Eu topo, disse, já me aproximando da tampa de cimento que o cobria. Bem, se meu irmão vai, também to nessa- falou o Cid. O quarto garoto, que apelidamos de anãozinho, claro, concordou , pois sabia que, em caso de recusa, seria castigado com as temíveis sardinhas. Vale salientar que o castigo impunha a aplicação de rápidos raspões com as unhas da mão no “bumbum”, como açoite. A vítima era obrigada a ficar com as duas mãos no joelho, a fim de melhor expor o alvo. Cabia ao autor da missão determinar a quantidade de sardinhas que seriam aplicadas. (60, no mínimo). E lá fomos nós! Corria uma água limpa, bem diferente daquela que chegava a inundar quase toda a Rua Barão em dias de chuva. Um riacho subterrâneo, vindo de não sei onde, que devia atravessar boa parte da cidade. Acendemos um toco de vela e demos início a empreitada. Agachados e em passos lentos, com receio de ferir os pés em algum caco de vidro, fomos afundando cada vez mais na escuridão. Eu caminhava na frente, empunhando a trêmula luz, naquela tarde de reinação campeã. Desconhecendo onde ia bater nosso nariz, eis que uma luz aparece no fim do túnel! Caminhamos um pouco mais depressa e desembocamos num verdadeiro oásis! Nossa! Que espetáculo! Um pomar repleto de árvores frutíferas e muitíssimo bem cuidado. Laranjas, peras, caquis, ameixas, figos, muitas frutas! Plenamente saciados e com a certeza de breve retorno, ficamos algum tempo no riacho que corria aberto, em pequeno trecho, até a Rua Anísio Ortiz para se esconder, novamente, pelas bandas do Taubaté Country Clube. Na volta, ao remover a tampa do bueiro para o “desembarque” na Rua Barão, uma velhinha do Asilo São Vicente de Paulo parou para nos olhar meio assustada. Credo, de onde tá vindo essa gente?! Vovó – diz o pintado – nós trabalhamos na Prefeitura.
Dia seguinte, ao acordar, comecei a arquitetar a próxima aventura, pois cabia a mim a escolha. Tinha que ser algo bem mais emocionante que rastejar em uma galeria escura para escoamento de águas pluviais- pensei. Eureca! Já sei! Só quero ver quem vai tremer!… Quando chegou a hora, e antes que perguntassem, fui logo dizendo: a missão, daquele dia foi subterrânea. Hoje será aérea! Aérea?! Sim,vamos escalar as paredes do Quartel e vasculhar o telhado prá ver se ainda encontramos aquela bola que ficou presa lá em cima.Acredito que vai ser muito divertido. O anãozinho, claro, foi o primeiro a contestar. Mas a parede é alta demais, acho que não vai dar. Vai dar, sim, Djalma, vamos subir pela garagem do Antonio; a casa está vazia, acho que ele voltou para o Rio. E Lancei a ameaça: alguém prefere sardinha?! Devia ser umas 3 horas da tarde quando iniciamos a escalada. A única maneira de realizar a façanha seria , mesmo, pela garagem que ficava nos fundos da casa e colada à grande parede do Quartel. Apesar de haver um garoto com o apelido de anão no quarteto, eu era o menor de todos e fui o último a alcançar o objetivo, fazendo uso de um caixote.
E lá fomos nós naquela imensidão de telhado que, antes, resguardava dos respingos da chuva o glorioso 6º Regimento de Infantaria, à esta altura, como anunciou o rádio naquela manhã, fazendo tremer o inimigo nos campos de batalha. Nos espalhamos e comecei a caminhar lentamente por aquele mar de cerâmica. Minha meta era a parte frontal da nossa casa, na Rua Barão, para reaver a bola que um chute mais forte havia decretado o fim de nossas peladas. Lembrei quando o bom Antonio nos permitiu percorrer todo aquele espaço, em baixo, para conhecer a Exportadora de Laranjas. Agora, lá em cima, a conversa era outra. Depois de muito custo, cheguei onde queria. E lá estava, como determinando a conquista de um troféu, a bola que voltaria a alegrar nossas tardes. Olhei triunfalmente para a rua que era a nossa praça de esporte e mamãe estava no portão com minha irmã. Hei CÉIA, guarda prá mim! E atirei a bola. Minha mãe apertou os olhos e exclamou: aquele é o Célio?! É, mãe! Desce daí, menino, Desce… já!!! Nem queira saber o que você arrumou! Os soldados estão armados, ouviram barulho no telhado e estão pensando que é a quinta coluna tentando sabotar o Quartel! Meu Deus do céu!!! Tudo bem, mãe, vou descer. Avisa prá eles que somos nós. Nós?! Sim, mãe, o Cid, o Pintado e o Djalma também subiram. Minha Nossa Senhora!!!
Realmente, quando o 6º RI partiu, alguns soldados ficaram para guardar o Quartel que seria novamente ocupado por outro Regimento.
Mas, o dia seguinte viria com mais surpresas!
Pouco antes da hora do almoço o caminhão do Tio Zeca para em frente a nossa casa e o Cid desce com duas abóboras, trazidas da fazenda do CATAGUÁ e grita: ajuda aqui! Tinha que ajudar, mesmo, pois eram pescoçudas e grandes. De uma, mamãe fez quibebe para o almoço e uma panelada de doce com canela, cravo e coco, como só ela sabia fazer. Uma delícia que tratamos de comer rapidamente porque não havia geladeira. E a outra, que faremos?! A gente podia oferecer para o turco. Boa idéia- disse meu irmão- você fala com ele, então. Ganha a metade se fizer o negócio.
Quando entrei no boteco para propor a venda da cucúrbita, seu Elias, que estava mastigando um biscoito farinhento, fez de guardanapo o dorso da mão, passando-o sobre a boca e disse: Bode falar, menino. Bai querer o quê? Temos uma abóbora de pescoço, muito bonita e grande. Interessa pro senhor? Intaressa, sim. Ta berfeita, com cabinho brá segurá? Claro, seu Elias. Vou trazer pro senhor ver. Voltei prá casa e falei com o meu irmão. O turco se interessou, mas quer saber se está perfeita.
Como, perfeita? Ora, se não está machucada, estragada, se tem o cabinho… (pedúnculo, caule) Pior que fui levar a abóbora para o rancho e o talo ficou em minha mão. Então não vai dar! Vai dar, sim. A gente cola! Claro que nenhuma cola de que dispúnhamos resolveria o impasse. Então, a solução seria prender com palito de fósforo, sugeri. Não, disse o mano, palito de dente, que é mais comprido! Boa idéia!
E lá estava o cabinho novamente pregado no pescoço da abóbora, que coloquei cuidadosamente sobre o balcão, torcendo para que, naquele momento, o caule não despregasse. O turco olhou, olhou, bateu a mão na abóbora e disse: – É…BARECE que ta bom!… Eu dá dois mil reis BOR ela. Nossa, seu Elias, só isso? Nem um TOSTOM mais! Abriu a gaveta e colocou cinco moedas de 400 reis no balcão. Tá bom, seu Elias, fazer o quê! Coloquei as moedas no bolso e, na rua, já ganhando distância deu prá ouvir o turco esbravejar: F… do BUTA! Ih!… Segurou no Caule!
[box style=’info’]Celio Moreira conhecido também como O Sombra, do Jornal de Vanguarda, é um dos grandes profissionais de comunicação da história do jornalismo nacional.
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1 Comment
Muito bom!.
Adorei!
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