Vale de viajantes – I
Por Angelo Rubim e Fabiana Pazzine
Em seu “Por amor às cidades”, Jacques Le Goff nos introduz aos estudos urbanísticos dividindo e comparando a cidade em dois tempos: o antigo e o medieval. Para o autor, […] há mais semelhanças entre a cidade contemporânea e a cidade medieval do que entre a cidade medieval e a antiga. Adentra os tempos modernos apontando as mudanças sociais sofridas na transformação urbana e na construção de novos significados dos espaços e símbolos da cidade.
A cidade antiga cedeu o espaço do sobrenatural, do mito, da religião, do místico, para o moderno, o novo, o racional… a reconstrução do espaço (o espaço ideal), além da modernização, instituiu um novo olhar sobre a cidade. Se já não é mais uma cidade mística, passou a ser o centro da civilização. O que é de fora é sempre menor, inferior, pobre.
A cidade moderna não transformou apenas a si própria, transformou a mentalidade, os costumes e todas as relações entre os indivíduos componentes. Os espaços urbanos passaram a ser classificados. Renda, prestígio e poder tornaram-se reguladores da sociedade. Os espaços públicos foram hierarquizados, os locais de diversão, por exemplo, como lembra Le Goff, passaram a separar a sociedade. O estádio não tem mais sua razão de ser: o esporte toma formas completamente diferentes. Reservado à classe nobre, ele se torna essencialmente exercício militar […], já que se estabelece uma nova relação com o corpo. (p 9-10).
O que o autor nos mostra é a possibilidade em separar e analisar o tempo de “vida” da cidade. É nesse sentido que avançaremos com esse breve estudo: a análise do modelo urbanístico original e a manutenção desse perfil até a atualidade.
Não falaremos, no entanto, sobre tempos tão remotos como os da análise de Jacques Le Goff, pois não seria possível, tendo em vista que nosso trabalho se atêm ao estudo da cidade Taubaté, que contabiliza apenas 366 anos. Ainda assim, é possível identificar algumas características da cidade “antiga-moderna” caracteristicamente européia, apresentada por Le Goff.
Na história da formação das cidades brasileiras, existem dois formatos urbanísticos mais comuns. O primeiro é o modelo português, normalmente irregular, com a estrutura respeitando a topografia original onde se instalava, como o caso de Guaratinguetá.
O segundo é o modelo espanhol, melhor planejado, característico nas cidades paulistas fundadas sob o influente Tratado de Tordesilhas, que evitava os acidentes topográficos instalando-se em terrenos regulares, permitindo a construção das cidades em formas geométricas precisas, normalmente quadriláteras, como é o caso de Taubaté, Pindamonhangaba e Lorena.
Até meados do século XIX, a cidade valeparaibana pouco foi alterada. As pequenas vilas continuavam pequenas, as atividades econômicas, salvo o período da mineração, continuavam basicamente as mesmas desde os primórdios da ocupação da região. O ciclo cafeeiro, no entanto, começou a alterar a paisagem urbana do Vale do Paraíba. O crescimento do número de logradouros, de construções de luxo, do transito de pessoas e carros (de tração animal) foram cuidadosamente relatados pelos viajantes. Além disso, impressiona a velocidade dessa transformação. Se até o início do século XIX as cidades viviam relativamente estagnadas, o século que se iniciava deu impulso às atividades urbanas e à modernização das cidades.
Esse impulso modernizador do século XIX, permite realizar a separação temporal semelhante àquela apresentada por Jacques Le Goff. O autor pensa primeiro em uma cidade antiga, depois na cidade da Idade Média. Aqui, pensamos primeiro na cidade original, que é aquela que foi erigida na ocupação territorial, em meados do século XVII, e se manteve quase que inalterada durante cerca de dois séculos. Em seguida, a cidade moderna, surgida durante o século XIX, que representa a inversão dos valores coloniais, a passagem do centro de importância relativa da vida social. A cidade paulista deixa de ser acessória ao campo, para ser o centro da vida. O campo passa a servir a cidade, não mais o contrário. E é exatamente no momento dessa inversão de valores que abundam os relatos de viajantes sobre o Vale do Paraíba e Taubaté.
Os relatos de viajantes imprimem o Brasil sob a ótica do sujeito, a imagem particular do indivíduo sobre toda uma sociedade. Além disso, devemos considerar a viagem como uma experiência de estranhamento, diante da geografia, da fauna, da flora, dos habitantes, costumes e tradições, diante do outro.
Esse relacionamento com uma realidade diferente daquela a que conhecia, produziu distorções nas realidades vividas e vistas pelos viajantes. Justamente pela submissão do que via à seu imaginário simbólico, ou seja, o julgamento da experiência por imagens mentais que se constituem em representações do real que, ao interagir com a realidade concreta, passam a fazer parte da própria realidade, impressa no discurso, apresentando diferentes significados. Como todo e qualquer sistema histórico de representação coletiva, o imaginário se expressa por discursos e imagens que tomam como referente o real, mas que são capazes de negá-lo, contorná-lo, ultrapassá-lo. (PESAVENTO, p.1)
Se isso é verdade, não devemos usar os relatos como verdade absoluta, a leitura das impressões, textuais ou iconográficas, devem ser feitas de forma cuidadosa porque, o olhar europeu frente o cenário brasileiro marca a distância entre observador e observado, forçando-o a desenvolver estratégias de auto-representação, pois a mera presença do outro diferente do viajante dá que pensar sobre as condições dessa sua identidade.
As relações de alteridade definem as percepções sobre a paisagem vista pelo viajante. Se ver o outro torna-se uma experiência desagradável ao viajante, o ambiente em que aquele vive, naturalmente, torna-se igualmente desagradável. Em outras palavras, se “vejo” o outro como inferior, também “vejo” seu espaço como inferior.
Sendo assim, leva-se em conta nos relatos a sua contextualização enquanto discurso inserido numa época determinada. Os relatos são condicionados por um contexto de produção. Trata-se de discursos, e a essência formal dos discursos não se manifesta senão na sua ambigüidade e subjetividade (ALVES, 1983, p. 33).
Le Goff, lembra também sobre a percepção que o local tem sobre o estrangeiro. Segundo o autor, o estrangeiro, durante muito tempo, é recebido, antes, com interesse, curiosidade e honra, do que como objeto de repulsa e desprezo (LE GOFF, p. 54). Há, portanto, um interesse mútuo: o viajante pela paisagem e o local pelo que o estrangeiro traz, material ou não. Sendo assim a relação entre o ambiente e os viajantes é uma relação de troca, não necessariamente uma troca positiva é, como bem analisa Pratt (1999), um espaço de interconstituição de representações e olhares, que se dá no embate perceptivo e discursivo da alteridade.
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REFERÊNCIAS
ALVES, M. M. Caminhos da pobreza. A manutenção da diferença em Taubaté, 1680-1729. Taubaté: Taubateana, nº18, 1999.
BARREIRO, J. C. Imaginário e viajantes no Brasil do século XIX: cultura e cotidiano, tradição e resistência. São Paulo, Editora Unesp, 2002.
CAZAL, Manuel Ayres de. Corografia brasílica. Rio de Janeiro 1817, Reimpressa na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de SC, em 1918.
FONTES, Nancy Rita Vieira. “Noções do outro”. In Identidade e alteridade em João Ubaldo Ribeiro: Um brasileiroem Berlim. Literatura Brasileira XII: Literatura Brasileira contemporânea. Universidade Federal da Bahia: Instituto de Letras, 2005.
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 22 ed. São Paulo: Editora Nacional, 1987. (Biblioteca universitária. Série 2, Ciências Sociais; v. 23)
HOLANDA, Sergio Buarque de (org.). “A herança colonial: sua desagregação”, In História geral da civilização brasileira. 4ª ed. vol. I, tomo II., 1976.
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LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades: coversações com Jean Lebrun; tradução Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. (Prismas)
REIS, Nestor Goulart. Imagens de Vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP: Imprensa Oficial do Estado, 2001. (Uspiana Brasil 500 anos).
SAINT-HILAIRE, Auguste de, 1779-1853. Segunda viagem a São Paulo e quadro histórico da Província de São Paulo / Auguste de Saint-Hilaire ; tradução e introdução de Afonso de E. Taunay. Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1971.
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Angelo Rubim é historiador, produtor do Almanaque Urupês.