Monteiro Lobato, nosso clássico do faz de conta
Márcia Camargos, co-autora do livro “Monteiro Lobato: Furação na Botocúndia”, conta um pouco da trajetória do escritor taubateano
Por Márcia Camargos
Quando, ao escrever a história de Narizinho,
lá naquele escritório da rua Boa Vista,
me caiu do bico da pena uma boneca de
pano muito feia e muda, bem longe estava eu
de supor que iria ser o germe da encantadora
Rainha Mab do meu outono”.
A Europa “civilizada” estava em plena Guerra. No Brasil, longe do conflito e instalado na Fazenda do Buquira, herança do visconde de Tremembé, seu avô, Monteiro Lobato revelava a Godofredo Rangel a idéia de “vestir à nacional” antigos clássicos infantis, como Esopo. Coisa para crianças, mas com fauna e flora tropicais. “As fábulas em português que conheço, em geral traduções de La Fontaine, são pequenas moitas de amora do mato – espinhentas e impenetráveis. E lamentava: “É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a iniciação de meus filhos”.
No ano seguinte, em 1917, “para fazer alguma coisa”, como disse em tom de brincadeira, resolve tornar-se editor. “Começo publicando os contos do Valdomiro Silveira, outros do Agenor Idem [Silveira] e o Saci-Pererê. Faço a experiência com esses três livros e, conforme correrem as coisas, ou continuo ou vou tocar outra sanfona”, escreve em setembro ao amigo.
Apostando na recente atividade, Lobato redige um texto com enredo emprestado de La Fontaine que adapta à sua maneira. “A mim me parecem boas e bem ajustadas ao fim”, confessa em carta a Rangel de abril de 1919. Ressalvando que a coruja sempre acha lindos os filhotes, pede ao correspondente e crítico que avalie o conteúdo e anote os defeitos. “Mas pelo amor de Deus não os elogie. Ando elogiado demais – como quem se regalou demais com o mel e está com a boca a arder, e a querer tudo no mundo, menos mel…”.
Sua estréia nas letras infantis, porém, só ocorreria no final de 1920, com A menina do Narizinho Arrebitado, de 43 páginas, colorido e ilustrado com desenhos de Voltolino. Pouco depois prepara a versão escolar de Narizinho, acrescida de histórias inéditas. Em fevereiro, ao enviá-la para Rangel, que lecionava para crianças, solicita sua avaliação de professor e sugere: “Experimente nalgumas, a ver se interessam”. Nem foi preciso. Adotado pela rede pública de ensino, o livrinho de linguagem coloquial e fácil compreensão faz sucesso tão retumbante que surpreende o próprio autor: “Nunca imaginei que 50.500 [exemplares] fossem tanta coisa!”, exclama em maio. “Encheu-me os vazios das nossas salas da Rua Boa Vista. Tive de alugar uma vizinha, que também se encheu até o forro. E ainda acomodei milhares no porão lá de casa”. E ironizava: “O problema agora é vender, fazer que o público absorva a torrente de narizes”.
O escritor aos 13 anos…
Animado com as perspectivas na área da literatura infanto-juvenil, em 1926, já no Rio de Janeiro, para onde se mudara após a falência da sua Companhia Gráfico-Editora, Lobato confidencia ao amigo que enjoara de escrever para marmanjos, “bichos sem graça”. E, lembrando-se do impacto que a leitura do Robinson Crusoé lhe causara, prometia, numa frase que se tornaria célebre: “Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim morar, como morei no Robinson e n’Os filhos do capitão Grant”.
Mas o “pai” de Emília estava consciente de que nem só de entretenimento eram feitos os livros. Responsável pelo caráter e identidade cultural do indivíduo, sobretudo quando voltado para o jovem leitor em formação, o texto impresso veicula condutas éticas, valores sociais, padrões de comportamento. Não por acaso, no volume de Fábulas, lançado em 1922, que reunia 77 narrativas curtas, ele advertia que estas constituíam um alimento espiritual tão importante quanto o leite na primeira infância. “Por intermédio delas a moral, que não é outra coisa mais que a própria sabedoria da vida acumulada na consciência da humanidade, penetra na alma infante, conduzida pela loquacidade inventiva da imaginação. Esta boa fada mobiliza a natureza, dá fala aos animais, às árvores, às águas e tece com esses elementos pequeninas tragédias donde ressurte a ‘moralidade’, isto é, a lição da vida. O maravilhoso é o açúcar que disfarça o medicamento amargo e torna agradável a sua ingestão.”
Caipiras Cosmopolitas
Com isso em mente, depois de uma temporada nos Estados Unidos como adido comercial em Nova Iorque, o escritor, que voltaria ao Brasil depois da Revolução de 30, enriquece ainda mais suas histórias. Agora, além dos personagens consagrados da literatura universal, como Alice, Peter Pan, Chapeuzinho Vermelho e Branca de Neve, que interagem entre si, o pessoal do Sítio do Picapau Amarelo, e todas as crianças brasileiras, por conseqüência, passam a conhecer, e a conviver com figuras do cinema e de desenho animado norte-americano. Numa delirante confusão fabulística não faltam Shirley Temple, o cowboy Tom Mix, Gato Félix, nem os mitos da Grécia Antiga. Com eles, os picapaus aprendem sobre hábitos e costumes do passado, enquanto informam-se sobre as últimas conquistas tecnológicas.
Para uma geração habituada a se espelhar na Europa em busca de paradigmas e modelos, o ambiente rural do Sítio tornou-se um referencial. Revitalizados por Pedrinho, Narizinho e sua turma, nossa paisagem e nossa gente, com suas lendas e folclore, ganham relevância. Mas Lobato vai além. Em uma casa aparentemente provinciana do interior e não da cidade grande, descobrimos personagens cosmopolitas que viajaram para mais longe do que qualquer ser humano jamais logrou chegar, sem perder o frescor e a simplicidade da roça, cujos quitutes, odores e aconchego continuam nos remetendo ao paraíso da infância feliz e despreocupada. Aliás, é na cozinha que os saberes e os sabores fundem-se na autêntica cultura popular saída das mãos de Tia Nastácia. Seu bom senso e talento culinário permitem que resolva sozinha situações complicadas e perigosas. Ela prescinde, por exemplo, da erudição de Dona Benta e da argúcia de Pedrinho na hora de escapar das garras do Minotauro.
Depois de cozinhar para São Jorge na Lua, suportando o pavoroso dragão por devoção ao santo, ela doma o monstro chifrudo de Creta pelo estômago, empanturrando-o com seus famosos bolinhos. Despidos do atávico complexo de inferioridade que sempre marcou as relações do brasileiro com o dito Primeiro Mundo, os protagonistas da obra lobatiana dialogam de igual para igual tanto com filósofos e deuses, quanto com sacis e príncipes encantados. Espaço multi-étnico, multicutural e até mesmo trans-humano, o Sítio converte-se no exemplo da convivência harmoniosa. Numa pluralidade invejável nos dias correntes marcados pela intolerância, coabitam seres humanos brancos, negros e mestiços de todas as idades, daqui e de outras dimensões históricas, além de bichos, entes lendários, mitológicos e até vegetais, como o Visconde de Sabugosa, uma espiga de milho com erudição enciclopédica.
Rompendo com a noção de centro e periferia, num Sítio de fronteiras múltiplas que se intersecionam e se interpenetram, Monteiro Lobato desloca a perspectiva do leitor e re-configura os repertórios imaginários, num claro desafio e confisco do poder simbólico antes nas mãos hegemônicas da Europa – hoje Estados Unidos. Com suas trocas culturais, ele permite a inserção do particular, do “caipira”, numa territorialidade mais abrangente e complexa. Se o Sítio é único e, ao mesmo tempo está em toda parte, com localização geográfica indeterminada e fluida, na fabulação lobatiana o regional adquire qualidades transcendentais. Nos serões de Dona Benta os horizontes ampliam-se e o sistema solar inteiro cabe entre as quatro paredes da sala, num movimento dialético de enraizamento nacional e pertencimento universal.
Com a fama alastrando-se por todo o país, Lobato prepara o que chama de “um livro absolutamente original”, Reinações de Narizinho, onde consolida num só volume as façanhas publicadas em partes, com “melhorias, aumentos e unificações num todo harmônico”. De São Paulo, avisava Rangel, em outubro de 1934, que pretendia lançar um verdadeiro Rocambole infantil. “Aventuras do meu pessoalzinho lá no céu, de astro em astro, por cima da Via Látea, no anel de Saturno, onde brincam de escorregar… E a pobre da Tia Nastácia metida no embrulho, levada sem que ela o perceba… A conversa da preta com Kepler e Newton, encontrados por lá medindo com a trena certas distâncias astronômicas para confundir o Albert Einstein, é algo prodigioso de contraste cômico. Pela primeira vez estou a entusiasmar-me por uma obra”.
No anel de Saturno
E de fato, graças ao pó de Pirlimpimpim, um ingrediente mágico catalisador da fantasia, ele faz seus personagens, e todos os leitores juntos, viajarem no tempo e no espaço, deslocando-se para épocas passadas, reais ou não, em frações de segundos. A uma velocidade superior à da luz, eles partem rumo ao cosmos e regressam sãos e salvos à república democrática do Sítio, onde todos têm vez e voz. Ali as crianças representadas pelos netos são ouvidas com consideração e as relações entre patrão e empregados (Dona Benta, Tia Nastácia e Tio Barnabé) dão-se em termos cordiais e de admiração mútua. Nisso, aliás, reside um dos grandes méritos de Lobato: ele equilibra as forças da tradição e da renovação em suas fábulas que funcionam como ponto de confluência entre opostos .
Assim, livres da repressão autoritária embutida no pátrio poder, avó e netos convivem em pé de igualdade, emitindo opiniões e respeitando-se uns aos outros.
Nessa confraria deliciosamente feminista, as personagens, com Emília à frente, roubam a cena e conduzem a trama como as heroínas shakespeareanas, sempre mais fortes e decididas diante das adversidades e do incerto do que seus companheiros do sexo masculino. Inventiva, crítica e irônica, a bruxinha de pano questiona verdades tidas como absolutas, desafia convenções e quebra tabus, sendo por muitos definida como o alter-ego de Lobato, que manifestava pontos de vista pela sua torneirinha de asneiras. Porta-voz irreverente das idéias libertárias e progressistas do autor, Emília, porém, não tinha a função de o esconder, posto que, como intelectual militante, Lobato nunca se esquivou em tomar posição nem criticar os poderosos. E o faria com tamanha independência e de modo tão contundente, que amargou perseguições, prisão e até queimas de livros infantis de sua autoria.
Poderoso expediente para afrontar a Igreja, os maus funcionários públicos e a burocracia da máquina de Estado, a boneca escandaliza os segmentos mais conservadores e tradicionalistas na primeira metade do século 20. Polêmica e loquaz numa sociedade patriarcal vincada pelas interdições à futura mulher, que deveria crescer simples, amável, obediente, humilde, meiga e caridosa, Emília era isso tudo – mas com sinal invertido. Fugindo ao enquadramento na ordem de gênero, faz pouco caso da etiqueta, da modéstia e da disciplina, entre outros princípios que ajudavam a moldar a maneira de ser feminina. Desdenhando dos atributos de fundo religioso desde cedo incutidos na mocinha destinada ao papel de esposa dócil, acomodada, frágil, dependente, medrosa e tímida, Emília completa uma trajetória admirável para uma boneca recheada de macela que nasceu feia e muda.
De ser inanimado, ela migra para o núcleo da narrativa lobatina, tornando-se responsável pelos seus melhores momentos. Depois de adquirir o dom da fala graças às pílulas falantes do Dr. Caramujo, ela não pára nunca mais de “meter o bedelho” onde não é chamada. Logo que tem a língua destravada, leva três horas seguidas sem fechar a boca, por causa da “fala recolhida”, conforme diagnóstico do médico-molusco. O que nos leva a crer que,cedo ou tarde, com ajuda ou não, ela acabaria “desemudecendo” por conta própria, visto seu potencial discursivo latente. E maneja a língua com destreza, sem o tatibitate natural no aprendizado do idioma, não obstante faça trocadilhos e cunhe uma ou outra palavra de forma sui generis, mais de birra e espírito de contestação do que por desconhecimento do léxico.
Após seu grito de emancipação, a boneca não pode mais ser detida, e tripudia sem dó sobre o estereótipo feminino desejável. Voluntariosa e mandona, traz o Visconde sabe-tudo no cabresto, enfrenta feras e monstros, dá palpites e confronta governantes, cientistas e quem mais se interpuser no seu caminho. Não vacila nem na ocasião solene das bodas, decidindo contrair matrimônio com um suposto príncipe, na realidade o Rabicó, num piscar de olhos. Seu casamento – e nisso a Igreja católica não perdoaria Lobato – é desfeito com a mesma presteza com que foi selado. Sem falsos moralismos, ela toma a iniciativa de se divorciar a um tempo em que as mulheres mal podiam escolher os maridos, aos quais, no entanto, deveriam permanecer recatadamente submissas. Nunca é demais recordar que elas só conquistaram o direto ao voto em 1933, quase uma década, portanto, depois da união interesseira da boneca, que pretendia virar princesa desposando um nobre… leitão.
Enfim, como locus privilegiado de diversão e lazer, já que as aventuras são sempre desencadeadas com a vinda de Pedrinho para passar as férias perto da avó e da prima Narizinho, o Sítio estimula a curiosidade e a busca do conhecimento, conjugando informação e prazer. Naquele ambiente lúdico os personagens comprovam o que Lobato, como inventor do livro paradidático sempre procurou e defendeu: a noção de que, com criatividade e incentivo dos adultos, é possível aprender brincando. A tática deu tão certo que, em março de 1943, um Lobato eufórico relatava a Godofredo Rangel:
“Vim do Otales”, diz, referindo-se ao antigo sócio, Otales Marcondes Ferreira, agora à frente da Companhia Editora Nacional. “Anunciou-me que com as tiragens deste ano passo o milhão só de livros infantis. Esse número demonstra que meu caminho é esse – e é o caminho da salvação. Estou condenado a ser o Andersen desta terra – talvez da América Latina, pois contratei 26 livros infantis com um editor de Buenos Aires.” E, ressaltando as peculiaridades da literatura voltada para o público mirim, explica: “Por não compreender isso e considerar a criança ‘um adulto em ponto pequeno’, é que tantos escritores fracassam na literatura infantil e um Andersen fica eterno”.
Calculando o alto grau de “reeditabilidade” dos seus livros como parâmetro do acerto de sua escolha e potência da sua vocação, nesta carta ao velho amigo ele demonstrava a solidez dos laços que o uniam ao exército de mini leitores, transcrevendo as frases de uma fã. Segundo ele, manifestações desse tipo constituíam o melhor prêmio que um escritor poderia desejar àquela altura da vida.
“Querido Monteiro Lobato”, começava a garota em março de 1943, “Chamo-o assim porque desde pequenina me habituei tanto a você, ‘tivemos’ tantas palestras juntos na minha imaginação, que não teria jeito de tratá-lo de outra forma”.
E prossegue: “O que você escreve eu devoro com delicia. Tudo! Livros infantis e não infantis. Seus contos e o mais são perfeitos. Não há neles uma palavra supérflua.” Desculpando-se então por não o ter visitado na cadeia, quando esteve preso por três meses durante o Estado Novo, ela conclui: “Se alguém me perguntasse qual a oitava maravilha do mundo, eu diria: a Emília, ou o Sítio do Picapau Amarelo, pois tudo se confunde”.
Ítalo Calvino afirmou que os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual. Sem nunca terminar de dizer aquilo que tinha para dizer, o clássico é relido como uma descoberta, feito da primeira vez, e provoca uma nuvem incessante de discursos críticos sobre si 5 . Nesse sentido, a declaração da admiradora, que assina apenas com a inicial “F”, não deixa dúvidas: Monteiro Lobato infantil é um clássico para Emília nenhuma botar defeito…
MARCIA CAMARGOS é jornalista, doutora em História Social pela USP e co-autora de ‘Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia’ (Senac/1997)