A TROMBA D’ÁGUA E O MILAGRE
Por Célio Moreira
Começou muito rápido. O céu tisnou e um vento cada vez mais forte começou a soprar as folhas secas da calçada, caídas do bouganville que pendia de um jardim em frente a nossa casa. “Ih, vem chuva grossa aí!” – falou o velhinho do Asilo São Vicente de Paulo, apertando o passo. Pudesse, e ele imitaria os pássaros que saíram em desabalada para seus ninhos. Chuva forte era motivo de grande preocupação em nossa casa e para todos os moradores no final da Rua Barão da Pedra Negra. Era ali e também no Bairro Chique que as águas subiam além da conta. Os bueiros não davam vazão, as águas se avolumavam e, não raro, iam parar dentro das casas. A Prefeitura, diante dos reclamos, como sempre, fazia ouvidos moucos e prosseguiu surda por muitas décadas. O tempo, desta vez, se mostrava mais que rancoroso e tratamos logo de colocar o “tampão” que se encaixava nos trilhos do portão voltado para a rua e que dava acesso ao nosso pequeno jardim. Genial invenção de papai visando a conter a invasão das águas.
Agora parecia noite e o vento zunia lembrando um furacão. Entramos rapidamente quando algumas telhas de casas vizinhas começaram a voar, se estatelando em cacos pela rua. Encontramos nossa mãe grudada num terço, sempre apavorada quando a tempestade vinha acompanhada de ventos e trovões. Balbuciava o nome de Santa Terezinha de quem era fervorosa devota. E não era para menos! Contava ela, repetidas vezes, que após meu nascimento foi acometida de febre puerperal, doença que na época tirava a vida de muitas mulheres, pois a medicina ainda não dispunha de meios para combater as bactérias responsáveis pela infecção.
Febril, bastante debilitada, praticamente à beira da morte, mas invocando sempre o nome de sua protetora, eis que seu quarto, em dado momento, foi invadido por ativo perfume de rosas. E a Santa estava ali, à sua frente, sorrindo e olhando para ela e para o berço onde eu estava. Acenou a cabeça afirmativamente quando mamãe perguntou se ia recuperar a saúde, para desaparecer, em seguida, mas deixando atrás de si a leve fragrância das rosas. Imediatamente, mamãe saiu da cama à procura de algo para comer, pois não se alimentava há vários dias. Estava curada!
Da mesma forma que a chuva foi embora perseguida pelo vento e, para nossa alegria, fomos dar umas braçadas no grande lago que se formou bem em frente à nossa casa. A “leptospirose”, doença transmitida pela urina dos ratos, ainda ia esperar bastante para merecer destaque. Também imagino que não corríamos nenhum risco, tendo em vista que a comunidade dos camundongos ainda incipiente, na certa, era também menos poluída. Vivíamos um período em que as notícias caminhavam sem muito compromisso com o“furo de reportagem”, expressão adotada mais tarde pelos coleguinhas durante muito tempo e que costuma escapar até hoje, em plena era da comunicação. Assim, fomos saber algum tempo depois, ou seja, no dia seguinte, que havia caído uma tromba d’água na cidade, precisamente no Alto de São João, deixando totalmente ilhado o Mercado Municipal e causando enorme prejuízo a inúmeros comerciantes em toda a Praça.
Mas o que a gente queria mesmo ver era onde havia caído a tal tromba d’água. Amassando barro com os pés, passamos pela Praça do Mercado e fomos direto para o Alto São João. Não foi difícil encontrar o local. Pequena multidão já disputava a melhor posição para admirar o enorme buraco produzido pela fúria do tempo e que lá permaneceu até não sei quando.
[box style=’info’]Celio Moreira
conhecido também como O Sombra, do Jornal de Vanguarda, é um dos grandes profissionais de comunicação da história do jornalismo nacional.
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1 Comment
Excelente narrativa.
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