A VILA SÃO JOSÉ E O VELHO CAMINHÃO
Tento lembrar as pessoas e os momentos de grande satisfação vividos em minha infância e sinto um grande pesar por não mais existirem. Tio Galdino, por exemplo, o irmão mais novo de papai, era de extrema bondade. Sempre atento com nosso bem estar e pronto para executar qualquer desejo de seus sobrinhos. Não era muito amigo do trabalho e, por isso, vivia sempre na pindaíba. Só mais tarde é que fomos aquilatando, apesar da forte pressão da família, a fraca disposição de nosso tio enfrentar o batente. Mas foi ele que me encheu de alegria quando mostrou um carrinho de madeira, todo pintado de verde. Olha aí, Célio, o que eu fiz. Que legal, tio! Que vai fazer com isso? Ora, não lembra que você me pediu que fizesse um, que ia vender laranjas? Esse era um dos tios que até hoje guardo em meu coração. Ele morava com vovó na Vila São José, lugar bem afastado da cidade, onde se podia contar nos dedos o número de residências. Às vezes eu e Cid passávamos o dia por lá. E como era bom saborear aquele feijãozinho com arroz e ovo frito preparado com carinho pela vovó CAETANA! Íamos pedalando a Bianchi MILANO à qual papai dedicava acentuado ciúme. Cuidado com ela, hein, dizia o velho. Era muito divertido. A Vila São José, com seu imenso espaço carregado de árvores e muito mato, constituía um cenário pronto para nos oferecer as mais variadas e arriscadas aventuras.
No caminho percorrido até o Rio Pedregulho para pescar e tomar o habitual banho, a presença certa e incômoda de cobras venenosas. Na volta, bois bravos balançavam seus chifres para nos assustar. E vinham bufando atrás da gente. Nosso refúgio eram as árvores. Ficávamos empoleirados até que a raiva do boi acalmasse ou o mugido apaixonado de alguma vaca o atraísse para longe. Também havia um campo de futebol que durante a época de chuva se transformava num grande lago. Certa vez, voltando pra casa, paramos ali para assistir a uma pelada. E logo veio o convite: Querem jogar? Claro que a gente queria! Então, entra um pra cada lado, ok? Começamos a correr. Cid de um lado, eu do outro e não demorou muito pra gente perceber na fria que entramos. Em pouco tempo, sem mais nem menos, eles vinham com empurrões e pontapés para nos tirar a bola. Assim, a paciência foi se esgotando e, no momento em que levei um tranco e vi meu irmão reagindo do outro lado, não tive dúvida, mandei a mão no agressor e saímos em desabalada corrida, com dois times enfurecidos atrás da gente.
Dia seguinte, bem cedinho, minha mãe me sacudia. -Acorda menino! Você não disse que ia sair com seu Tio?! Levantei, rapidamente, e toquei para a casa de meu Tio. Ele morava numa das últimas casas da Rua Visconde do Rio Branco, depois do Bosque e em frente ao Estádio do EC Taubaté, onde, na semana anterior, assistimos divertida apresentação de Grande Otelo. Mas, tio Zeca trabalhava, e muito, com seu novo caminhão. O anterior ele exibia, numa foto, com temeroso orgulho: eram os escombros de seu veículo após ser abalroado por um trem. Ta vendo? Eu estou aí, escondido no que restou de meu caminhão- dizia ele. E todos concordavam com a afirmação de que acontecera um Milagre! Tomamos delicioso café, servido por tia Hermínia e tocamos o bonde para a fazenda do CATAGUÁ. O caminhão, em meio a solavancos, ia engolindo a estrada poeirenta e só parava quando alguém acenava pedindo carona. Eu gostava da atitude de meu tio, e muito! Toda gorjeta, que ele nunca aceitava, vinha cair no meu bolso!
Chegamos à fazenda e já estava descendo a Serra, em lombo de burros, o leite que seria transportado para o laticínio de Pindamonhangaba. Cada um carregava dois grandes latões. Meu tio abre o primeiro, me passa um canecão e diz: bebe o quanto quiser! Eu estava com sede, mas, antes de me servir, fiquei admirando aquele leite branquinho que exibia espessa camada de gordura amarela na superfície, quase se transformando em manteiga, batida que foi no caminhar turbulento do animal. E, como sedento e obediente bezerro, mergulhei o canecão até que este transbordasse.
Caminhão carregado e após a breve despedida de capataz e dos peões iniciamos a viagem de volta, agora um pouco mais devagar em respeito ao peso da carga. A paisagem ia sendo desvirginada pelo meu olhar sempre curioso. “Gostou do leite?” Perguntou tio Zeca, sem tirar o olho da estrada. “Muito bom!” “Pois, se prepara que tem mais quando chegarmos ao laticínio!” Realmente, seria mais um canecão de leite, desta vez gelado e sem a gordura aparente. Atravessamos toda Taubaté e, passando pela Penitenciária, pegamos a Estrada Velha rumo a Pindamonhangaba. Em todo o percurso da viagem um fato mereceu minha atenção: tio Zeca tirava o chapéu toda vez que passava em frente a uma capela ou Igreja. Com certeza, ainda agradecendo por não ter ficado, certo dia, entre os destroços do velho caminhão acidentado.
[box style=’info’]Celio Moreira
conhecido também como O Sombra, do Jornal de Vanguarda, é um dos grandes profissionais de comunicação da história do jornalismo nacional.
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