UMA INCOMPREENSÃO MILENAR: A GUERRA DO BARRO FOFO CONTRA O CONCRETO ARMADO
Hoje vou falar de uma história que tem dado (e ainda vai dar muito mais) pano pra “manga”. Trata-se da derrubada de uma mangueira quase centenária no Largo São Sebastião, praça transformada em espaço cultural pelo governo público e conhecida por abrigar em suas plagas o Teatro Amazonas. A desculpa dada, alguns dias depois, era de que ela estava doente e precisava ser removida, no entanto os assíduos frequentadores do local, sejam estudantes ou senhores aposentados, não perceberam o menor sinal de doença na mangueira. As folhas não mudaram de coloração, os galhos não estavam caindo. Nova desculp… digo, argumento do governo: as raízes dela estariam prejudicando o entorno. Bem, o Teatro fica em um plano muito mais elevado. A coisa mais perto da pobre mangueira é uma banca de jornal que, segundo sua dona, não tem sido prejudicada pro nenhuma raiz.
Agora surge magicamente um projeto de arborização de Manaus onde as mangueiras serão substituídas por ipês. O que explicaria a retirada das mangueiras próximo do terminal rodoviário na Av. Constantino Nery e a derrubada da pobre árvore no Largo São Sebastião. Há algum tempo atrás o governo do Estado investiu no paisagismo da única cidade do Norte escolhida para sediar a Copa do Mundo. Detalhe: estamos falando basicamente de colocar em cada praça e canteiro das avenidas palmeiras. Nada contra palmeiras ou quem torce para o time, mas em uma cidade onde se precisa de sombra nesse sol cruel não é o tipo de planta que demandamos.
Hoje o paisagismo, assim como a arquitetura, requer não só beleza, mas funcionalidade. Se fala muito da falta de consideração dos urbanistas da Manaus da borracha, tentando desfigurar a cultura local do traçado da cidade, mas um ponto há que se reconhecer em seus projetos: a estética e o pragmatismo andavam juntos. Na Av. Getúlio Vargas temos um bom exemplo disso: seguiu-se o modelo parisiense, os famosos boulevards, com imensas árvores por todo seu trajeto, resultando até nos dias mais quentes num corredor agradável onde sombra e vento não faltam.
Mas a verdade é que Manaus, a cidade encravada no meio da maior floresta tropical do mundo, não sabe equacionar suas áreas verdes. Irônico, não? Antes os igarapés eram ocupados por famílias carentes, mas a poluição fez deles um foco de insalubridade. A solução adotada foi a remodelação dos igarapés. Hoje no Igarapé de Manaus e na entrada do bairro do Educandos temos um conjunto de casas pré-fabricadas e um fiapo de água que chamam ainda de igarapé.
Não se trata apenas de ocupações irregulares, mas também de especulação imobiliária. Um terreno baldio no bairro de Adrianópolis com uma mata ciliar bem preservada foi comprado e desmatado para que um edifício comercial seja construído em seu lugar. E a especulação imobiliária cruzou a ponte: já podemos ver clareiras abertas no outro lado do Rio Amazonas, no município de Iranduba, com placas aludindo para o futuro show room ou galpão comercial.
Karl Marx disse uma vez que até o modo como o homem interage com a natureza pode ser uma relação de dominação e o capitalismo acentuou isso profundamente. A natureza se torna fonte de matéria prima, uma mercadoria esperando ser lapidada apenas. O médico e pensador acreano Djalma Batista alertava que a História da Amazônia tem sido a história de uma incompreensão. A incompreensão entre o homem e a natureza. Na verdade, os povos ribeirinhos convivem de maneira muito mais respeitosa com o meio em que vivem. Há aqueles que o digam que eles são até parte desse ambiente. Mas desde a colônia explorar a natureza amazônica tem sido uma tendência. Antes, a Coroa explorava as drogas do sertão, todo produto vindo da selva – de cacau á ovos de tartaruga. Depois, a borracha passou a ser o produto por excelência da região. Finalmente, a indústria capitalista entra na Amazônia com a Zona Franca e quase ao mesmo tempo que as madeireiras e o gado.
Ou seja, são quase 500 anos de extrativismo puro. Não existe nada de errado com o extrativismo desde que ele seja racional e preservar o meio ambiente é uma forma de preservar o seu sustento. Infelizmente, a mentalidade desenvolvimentista (para a qual desenvolvimento é sinônimo de crescimento econômico, independente se há distribuição de renda ou não) se conserva quase intacta na região. Praticamente ela é gestada na década de 30, com o deslumbre pelos planos de integração e desenvolvimento da Amazônia traçados pelo governo Vargas para salvar a borracha. Seu ápice vem com o regime militar que se preocupa tremendamente com a Amazônia por conta da questão da segurança nacional (as palavras do marechal Castello Branco sobre a região deixam isso claro: “É preciso integrar para não entregar”).
Assim encontramos hoje uma Amazônia que sofre com os efeitos dessa política imediatista: a floresta corre risco de ser completamente devastada por conta das madeireiras e da pecuária bovina enquanto os rios amazônicos sofrem com a poluição dos garimpos. O potencial da região para o desenvolvimento sustentável (já defendido por Djalma Batista na década de 1970 sob o nome de “desenvolvimento auto-sustentado”) não é aproveitado.
Claro, o movimento ambientalista aqui é forte, mas não tão unido como deveria ser, isso por uma série de motivos. Convém lembrarmos que o discurso ecológico encontra muitas barreiras nas pessoas comuns por ir de encontro á velha mentalidade do homem subjugando a natureza, mas principalmente por não atingir a linguagem dessa população. Ecologia e economia não estão necessariamente separadas. E na Amazônia isso fica muito claro. As madeireiras são famosas por oferecerem uma oportunidade de trabalho rápida e rendosa para as pessoas que vivem no interior. A prioridade de muita gente continua sendo sair da miséria. Podemos culpá-los? Não. Numa das sociedades mais desiguais, isso é perfeitamente compreensível. O que nos resta a fazer é atingir verdadeiramente essa classe com medidas que possam salvar o meio ambiente e sua família. Cooperativas, ecoturismo (eu tenho lá minhas dúvidas com isso, mas…), novas técnicas de cultivo (modelo das agro-florestas, por exemplo), etc.
No entanto, não percamos a esperança. O burburinho feito pela derrubada da mangueira demonstra que há uma consciência ambiental forte na cidade, mas que ainda precisa ser regada muitas vezes. A polêmica toda deixa á mostra essas fortes contradições na Amazônia (manejo ambiental/devastação), nos fazendo pensar no passado, presente e futuro da região. Será que essa incompreensão quase milenar continuará?
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