Intendência Municipal: Vida e morte da Ditadura Affonsina
Texto de Angelo Rubim
No final do governo imperial brasileiro, havia forte tensão social e política em função da iminência da falência do Regime. Não se sabia ao certo quando e em quais circunstâncias aconteceria, justamente por isso as lideranças políticas já formavam suas tropas para ocupação do espaço que, esperava-se, seria completamente renovado caso não houvesse imediata aceitação da mudança.
Em Taubaté, muitas eram as vozes em favor da República. Os principais propagandistas desse modelo político na cidade foram o engenheiro Fernando de Mattos, que investiu pesadamente no discurso, por meio do Jornal do Povo, e o farmacêutico José Pedro Malhado Rosa. É necessário salientar que o discurso vinha sendo fortalecido desde quando iniciou-se a luta pela abolição dos escravos. Apesar disso, a primeira grande manifestação republicana em Taubaté só aconteceu em 18 de junho de 1889, quando o então senador Joaquim Lopes Chaves aderiu ao movimento.
Naquele momento, eram dois os principais veículos de informação, o já citado Jornal do Povo ao lado dos republicanos e O Noticiarista com os monarquistas. Era por eles que o embate político se tornava público.
A notícia da Proclamação da República só desembarcou na cidade no dia 17 de novembro, no monarquista O Noticiarista: si é verdade e o governo da monarchia deixou-se supplantar pela vontade na nação, o que desejamos é que seja para felicidade do povo a nova forma de governo que vem de iniciar(O Noticiarista, 17/11/1889). A partir de então os movimentos pela Monarquia e pela República ficaram desorientados.
A Câmara Municipal pronunciou a sua adesão ao regime instalado alegando a possibilidade da instituição de um Estado sem governo. E só manteria a posição após eleições populares (cf. O Noticiarista, 21/11/1889). Na mesma sessão, ao ser consultado, foi anunciada a adesão do Visconde de Tremembé à posição adotada pela Câmara. Indicando que nem mesmo as instituições administrativas compreenderam a amplitude das mudanças inseridas com a proclamação de um novo regime político, ao mesmo tempo demonstra a tendência conservadora e patrimonialista da cidade.
Tendo em vista a confusão existente entre os poderes institucional e pessoal e, sendo a consulta feita ao Visconde evidência disso, esse personagem aparece como orientador do bem-estar institucional (cf. FAORO, 2000, V.1, p. 96), coordenador das vontades alheias.
Uma das medidas do governo republicano nacional foi, em janeiro de 1890, dissolver todas as câmaras municipais, que foram substituídas pelos Conselhos de Intendência, compostos por cidadãos nomeados pelos presidentes de Província. Essa nomeação era provisória e deveria perdurar até a eleição para recomposição das novas Câmaras Municipais.
Até 1892 o intendente municipal foi o Coronel João Affonso Vieira, o prestígio conquistado com a nomeação feita pelo presidente do estado lhe garantiu poder para a construção de uma lógica administrativa teoricamente insuperável. Ainda mais com o reforço constitucional, que, em 1891 garantiu farta autonomia para os estados em seguirem sua própria orientação política.
Convertido em vereador e nomeado sucessivas vezes presidente da Câmara, João Affonso Vieira permaneceu à frente do poder local durante todo o período do Governo Provisório até parte do governo Prudente de Moraes. A longevidade de sua estadia no poder motivou o Jornal do Povo a classificar o período de “Ditadura Affonsina”.
Nesse momento, trabalho com a hipótese de que o controle exercido pelo coronel João Affonso Vieira como líder da política local, só foi possível porque os grupos republicanos e monarquistas estavam desorientados com a repentina mudança de regime. Aconteceu aquilo que o sociólogo Raymundo Faoro classifica como alheamento da elite. A proclamação da República teria causado um choque de identidade nesses grupos, permitindo que o poder fosse controlado por um terceiro elemento – João Affonso Vieira. Penso, ainda, que esse elemento foi o que garantiu o equilíbrio político durante os primeiros anos da República, pois, ao mesmo tempo que havia certa insatisfação com a condição, os dois grupos apoiavam o chefe da Câmara. Ao passo que se reorganizavam, o coronel tornou-se um obstáculo para o acesso ao poder.
Apesar do padrão de composição dos grupos políticos ser pautado basicamente na riqueza e na homogeneidade de interesses (em São Paulo e oligarquia era formada pelos cafeicultores e daqueles que dependiam indiretamente dessa atividade), o governo affonsino era misto, agrupando tanto os republicanos históricos quanto os monarquistas. A característica fundamental desse governo é a situação de intermediário entre o advento da República e o entendimento, pelos agentes políticos, de sua organização.
Na prática, não havia uma organização institucional bem definida, o que, teoricamente, daria margem para a criação de uma lógica administrativa dependente de quem detinha o poder, ou seja, criar-se-ia uma instituição fundada sob a personalidade de determinado grupo político, ou mesmo centrado na imagem de um único político, como aconteceria novamente anos mais tarde.
João Affonso foi tido também como um objeto usado por outros políticos que se alimentavam da instituição pública. Com essa afirmativa foi que, em 1892, iniciou-se a oposição ao seu governo. As acusações eram sempre pautadas pelo discurso de democracia e liberdade sonhadas pelos propagandistas da República.
O poder era tão personalista que as acusações feitas ao coronel eram respondidas com violência. O Jornal do Povo, principal opositor, foi sucessivamente atacado por agressores portando facas e armas de fogo. Em duas ocasiões as oficinas do jornal foram incendiadas.
O discurso de oposição se fortaleceu e passou a usar os ataques como exemplo de abuso de poder exercido por João Affonso e seu irmão, o delegado Euzébio Affonso Vieira, até então oculto nas ações políticas. De acordo com o jornal, os ataques sofridos em suas oficinas foram efetuados pela polícia, culminando na proibição da sua circulação em junho de 1893, o que caracterizava mais uma tentativa de empastelamento.
O caso provocou uma debandagem de monarquistas para o Jornal do Povo, como aconteceu com Gastão da Câmara Leal. João Affonso Vieira já não agradava aos políticos da cidade e tanto republicanos quanto monarquistas passaram a ver no coronel um inimigo em comum. A tendência a partir de então era a da morte da ditadura affonsina.
O coronel fez uma última manobra ao patrocinar a criação de um diretório político ligado ao Partido Republicano Paulista. Sob a presidência do Conselheiro Rodrigues Alves (que anos mais tarde se tornaria presidente da República), o diretório foi instalado em Taubaté. Os principais nomes que emprestariam prestígio ao grupo declinaram para evitar qualquer constrangimento. E o diretório passou a ter apenas três integrantes dos vinte e nove fundadores: o próprio João Affonso Vieira, José Pedro Malhado Rosa e Francisco Gomes Vieira, sendo que esse último não participava das atividades do grupo.
Em 1895, a voz de Fernando de Mattos, mantenedor do Jornal do Povo ganhou força como arquiteto de uma nova ordem institucional. Passou a patrocinar a ideia de renovação do diretório republicano ao enaltecer as imagens de José Benedito Marcondes de Mattos e Gomes Vieira para assumirem a liderança política da cidade.
A administração Affonso Vieira foi interrompida quando aconteceu a consolidação do novo Diretório Republicano. Apesar da presente figura de Fernando de Mattos, o novo grupo adotou o que chamaram de política lopista, pois, liderado por José Benedito Marcondes de Mattos, apoiava-se na força do senador taubateano Joaquim Lopes Chaves.
A força do Jornal do Povo foi demonstrada ao promover a quebra daquilo que chamavam de camarilha affonsina e acabaram com o Domínio do Terror, como chamaram a fase de sucessivas tentativas de empastelamento do jornal e abusos de poder exercido pelo edil chefe.
Finalmente, em sete de janeiro de 1896, João Affonso Vieira deixou a Câmara após as eleições no ano anterior. A sucessão foi pacífica e a manifestação em homenagem promovida pelo periódico O Noticiarista ao coronel registrou cerca de duas mil pessoas em marcha, naquilo que o jornal chamou de espontânea demonstração do povo de Taubaté ao coronel João Affonso [como] o mais cabal desmentido ás calumnias que despeitados e orgulhosos politiqueiros tem dirigido ao distincto e honrado cidadão (Diário de Taubaté, 08/01/1896).
Naquele ano, o Jornal do Povo desapareceu. Aparentemente, o inimigo político havia sido eliminado, monarquistas e republicanos poderiam voltar às suas posições originais. Fernando de Mattos fundou meses depois o jornal A Razão, entretanto, já despreocupado com a administração municipal, sua propaganda naquele momento era contra o governo federal.
Entre 1896 e 1897 o clima de tensão política esfriou e a instituição política parecia abandonar sua fase mais caótica. Com a morte de João Affonso em 1898, as sequelas da antiga administração municipal foram também apagadas. Até 1906 a política taubateana ficou sob as ordens do Diretório Republicano, um grupo fundamentalmente heterogêneo, que agrupava desde tradicionais fazendeiros de café, até a categoria de industriais em ascensão, como Felix Guisard. O que ditaria o clima do cenário político taubateano dali para frente seriam as disputas entre esse grupo e o dos antigos monarquistas. No entanto, os dois bem reorganizados e objetivos.
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Angelo Rubim é historiador, professor e um dos editores do Almanaque Urupês
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1 Comment
Poxa! Muito bom, didático e esclarecedor
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