Vamos Jogar Taco? Esporte, Raça e Colonização no Caribe Inglês
Por Elaine P. Rocha
O jogo de taco é uma das brincadeiras de rua que as crianças brasileiras mais apreciam. Chamado de taco, betia, becha ou bets, o jogo tem diferentes nomes e algumas variações nas regras dependendo de onde é jogado. Trata-se de uma brincadeira simples, que não exige grande sofisticação, bastando dois paus de mais ou menos um metro de comprimento, sendo desejável que sejam achatados, com uns 7 -10 cm de largura (ainda que na minha infância eu tenha visto e jogadado muitas vezes com cabos de vassouras) precisa-se também de uma bola (mais uma vez, é desejável que seja pequena, mas joga-se com o que tem, até bolas murchas servem); faz-se uma “casinha” com três gravetos (outro dia vi meninos utilizarem uma garrafa pet vazia) e divide-se os times em dois atacantes – que batem na bola com o taco com a intenção de derrubar a casinha do adversário – e dois defensores do outro time, que por sua vez rebatem a bola com a maior força possível para fazer a bola ir longe e o jogador do time adversário se deslocar para recuperar a bola. Enquanto a bola está fora do campo, os dois defensores correm e cruzam o taco no ar, marcando assim os pontos. Bom, o jogo é mais ou menos assim, vocês devem saber melhor do que eu.
O fato é que esta brincadeira de crianças é o esporte mais popular entre britânicos e os povos colonizados pela Inglaterra, com direito a copa do mundo, campeonatos nacionais, regionais e locais. Chama-se cricket, e é praticado com grande reverência em campos apropriados, ou relaxadamente nas ruas, terrenos baldios e praias, assim como o futebol brasileiro. O cricket gera divisas, cria heróis nacionais e dinamiza o comércio e o turismo nos países onde é praticado.
CRICKET : o esporte colonial
O jogo de cricket teve suas origens na Inglaterra no início do século XVII, também como uma brincadeira de crianças. Curiosamente, o termo refere-se a um tipo de gíria antiga que misturava inglês e holandês falado nas regiões portuárias onde diferentes culturas interagiam no auge do poder comercial ultramarítimo britânico, e significa exatamente “taco” ou bat (palavra inglesa moderna para taco, que se pronuncia “bet”, daí que no Brasil muitos conheçam o jogo por betis). A brincadeira foi adotada pela elite que a transformou em sport, de forma que em 1744 já haviam regras para o jogo e especificações técnicas para o equipamento necessário, como o tamanho do taco, por exemplo. Por muito tempo, a prática de esportes era vista na Inglaterra como um costume de cavalheiros, que deveria ser vetado ao cidadão comum, à plebe e aos trabalhadores escravizados e condenados a trabalhos forçados.
No período vitoriano, adotou-se o uniforme branco, cujo uso alguns autores afirmam que estava relacionado à ideia de pureza e superioridade. Já neste período viajantes notaram que a plebe estava praticando o jogo dos cavalheiros à sua maneira, inclusive praticando-o nos porões dos navios de carga da poderosa marinha mercante inglesa. Um outro ambiente onde o jogo de cricket era muito popular eram os quartéis e as guarnições militares, onde o jogo era utilizado como forma de recreação e como elemento mantenedor da disciplina e da moral dos militares ingleses, diferenciando-os da ralé que deveriam dominar. Caberia às classes mais baixas e aos escravos apenas assistir ao jogo à distância, porém assim como aconteceu com outras práticas culturais, com o tempo o povo passou a imitar a elite adaptando o esporte às limitações de seu contexto e a documentação histórica revela escravos jogando o cricket à sua maneira nas grandes fazendas açucareiras de Barbados em seus poucos momentos de lazer.
A escravidão foi abolida nas colônias inglesas em 1838, porém a ordem social não sofreu uma grande alteração, com o ex-escravo na base da pirâmide, sofrendo exclusão em todos os redutos da vida pública. Por outro lado, o temor aos levantes sociais causados pela extrema exploração deste grupo aliada a iniciativas de qualificar a mão-de-obra minimamente, levou à abertura de escolas junto às igrejas e ao incentivo de práticas de esporte e lazer entre as camadas subalternas e por estudantes como medida salutar e de incentivo à disciplina.
Ao final do século XIX haviam vários clubes de cricket nas colônias do Caribe e a prática do esporte já era parte da cultura local. A disseminação do esporte, entretanto, não foi suficiente para eliminar as barreiras raciais e econômicas, e os times, clubes e campeonatos eram divididos de acordo com a classificação racial de seus membros, para impedir o contato interracial e de acordo com a classe social do indivíduo, como por exemplo, os clubes dos comerciantes, clubes de fazendeiros, de funcionários públicos, etc. .
Esporte e Relações Raciais
Estas práticas de classificação e exclusão dentro da disseminação cultural também fazem parte da história social das colônias inglesas na Àfrica, no Oriente Médio, na Índia e Ásia, e na Austrália e Nova Zelândia. O fenômeno que aconteceu em outros esportes como no futebol por exemplo, onde os times recusavam-se a incluir jogadores negros (Brasil e Argentina até a década de 20-30) não se aplicou ao cricket e encontramos jogadores negros do Caribe, representando o time das West Indies em torneios internacionais já no ano de 1886. De acordo com o historiador Hilary Beckles (The First West Indies Cricket Tour, 2006 e A Nation Imagined: The First West Indies Test Cricket Team, 2004) a grande barreira era econômica, devido aos custos de equipamento, uniforme e das despesas de viagens para os jogadores, sendo que os negros estavam entre os mais pobres. Isto fez com que excelentes jogadores não participassem das primeiras competições internacionais, por outro lado, as disputas com outros países deram forma à identidade caribenha em contraste com as outras colônias britânicas.
O tour de 1886 se estendeu entre cidades do Canadá e Estados Unidos, no qual o time caribenho se despontou não só pelas táticas de jogo, mas por ser o único que apresentava uma composição multirracial. Tais torneios eram apoiados pela Coroa Britânica e claramente mostravam a dominação colonial, contudo, o mesmo esporte criou mecanismos de identificação, não somente pela cultura imposta pela colonização que vai desde o idioma até instituições como a religião, sistemas de ensino e estrutura administrativa, mas pela forma como proporcionou uma identidade nacional dentro do sistema colonial, no qual os caribenhos, por exemplo, desenvolveram táticas de jogo diferenciadas que fazem parte da identidade e do orgulho nacional.
Ainda sobre a mesma turnê, encontram-se por se fazer as pesquisas sobre a impressão causada por um time multirracial em turnê por um país como os Estados Unidos onde a segregação racial era a norma para todas as atividades e lugares públicos. O time dos Caribenhos viajou e se apresentou em várias cidades, hospedando-se em hotéis e participando das atividades sociais que rodeavam os torneios. No diário do capitão do time, um Jamaicano branco chamado Laurence Fyfe encontram-se relatos detalhados da turnê internacional, incluindo eventos sociais e até o cardápio das refeições servidas ao time, mas nenhuma referência à animosidades contra o time. Contudo, é notável a formação de um time formado por jogadores vindos da Guiana Inglesa, Barbados e Jamaica, que na época ainda eram colônias inglesas caracterizadas pela monocultura da cana de açúcar, dominadas pela elite colonial e sua restrita hierarquia, onde se viam reunidos membros da elite colonial (branca) e os descendentes de ex-escravos, jogando lado a lado e convivendo muito próximos num período marcado pelas teorias racistas e práticas segregacionistas.
Ainda que já no início do século XIX competições de caráter nacional incorporassem times vindos das colônias para disputarem com times Ingleses, foi em 1909 que o Império Britânico promoveu a primeira Imperial Cricket Conference, uma espécie de campeonato entre as colônias do Império que reuniu times da Inglaterra, Austrália e África do Sul. Nos anos seguintes, juntaram-se a estes as West Indies (Caribe Inglês), Índia e Nova Zelandia. Mais uma vez a composição étnica dos times de West Indies e da Índia e o fato de competirem com times brancos, desafiava as práticas racistas do período.
O Cricket e a Construção da Identidade Nacional e Caribenha
A maior parte das colônias inglesas do Caribe conquistou sua independência durante a década de sessenta, ainda que a aceitação do status de país membro do Commonweath tenha de certa forma mantido a condição de subalternidade dessas sociedades em relação à coroa inglesa. Neste período, os países caribenhos já haviam consolidado formas culturais específicas na música, na literatura e em outras formas de expressão, inclusive nos esportes. O estilo caribenho de jogar o cricket foi logo associado ao ritmo musical do calipso.
Nas década de 70 e 80, já com equipes mistas e completamente popularizado, o “calypso cricket” dos caribenhos estava no seu auge, conquistando inúmeras vitórias contra seus adversários, mas foi a vitória contra a Inglaterra em 1981 que acendeu as chamas do nacionalismo e alimentou o discurso anti-colonialista que se opunha radicalmente às políticas neo-liberais da então Primeira Ministra Margareth Thatcher. Na opinião de historiadores como o citado Hilary Beckles e C.L.R. James (Beyond Boundary, 1963), o cricket conseguira na ocasião estabelecer um sentimento de unidade e identidade entre os países caribenhos que os apelos políticos por uma federação caribenha não havia conseguido alguns anos antes.
Cricket ou Taco?
Não há estudos específicos sobre as origens do jogo de taco no Brasil. Porém é possível que o jogo tenha começado a se popularizar nas áreas portuárias, ainda durante o século XIX, devido ao contato com marinheiros embarcados em navios ingleses.
A partir de 1870, com a entrada das companhias inglesas para a construção das ferrovias e de outros projetos de modernização, como os bondes elétricos, projetos de iluminação pública e de navegação a vapor, um significativo número de trabalhadores ingleses e súditos britânicos entraram no Brasil. O cricket se insere dentro das práticas inglesas de recreação, como fizeram os militares anos antes, como parte da política para elevar o moral dos funcionários das companhias britânicas. Estas companhias estiveram ativas no Brasil principalmente entre 1880 e 1940. Pode-se dizer que o cricket transformou-se em taco, beti, betia, betsi, betcha, à medida em que os trilhos dos trens avançaram pelos estados brasileiros, ou que os navios à vapor ancoravam nos portos fluviais do norte do pais.
Os trabalhadores e na maioria seus filhos, se encarregaram de espalhar a prática. Mais uma vez o mimetismo cultural se estabelece, com meninas e meninos brasileiros imitando um jogo do qual a princípio eram meros espectadores. A carência de elementos estruturais como o taco, bola e alvo (stumb) apropriado levou à contínua adaptação e improvisação, o uniforme foi definitivamente abolido e a regra brasileira mais observada é a diversão.
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Elaine P. Rocha é historiadora formada pela Universidade de Taubaté, com mestrados pela PUC de São Paulo e University of Pretoria, África do Sul, e doutorado em história social pela USP. Professora de História da América Latina na University of the West Indies, Barbados.