Valeu Mandela!
Por Elaine Rocha
Nas últimas semanas o mundo foi invadido por fotos e citações de Nelson Mandela. Gente do mundo inteiro se manifestou pela morte do líder sul-africano, dirigentes de várias nações foram à África do Sul prestar homenagens e a internet, o rádio e a televisão foram tomadas por imagens de pessoas diferentes regiões daquele país, não chorando a morte, mas celebrando a vida de Nelson Rolihlahla Mandela, a quem eles chamam carinhosamente de Madiba.
Eu cheguei a Pretoria, capital da África do Sul em 2002, três anos depois do fim do governo de Mandela, ainda assim por todos os lados encontrava a influência de sua personalidade e de sua liderança. No primeiro mês em que estava ali recebi de uma nova amiga, a jovem marroquina Hafsa Bakri, companheira das aulas de inglês, o livro “Long Walk to Freedom”, a autobiografia de Nelson Mandela. Ela, também uma estrangeira recém chegada àquela terra me disse: “Leia, vale a pena. Você vai entender melhor este país.” Hafsa estava certa; para entender a África do Sul é preciso ler sua história, é preciso saber a longa trajetória que a fez sair das sombras do regime segregacionista mais opressivo e violento para entrar num período de reconciliação e reconstrução. A autobiografia de Mandela é, neste sentido, uma radiografia do seu país e de outros países no cone sul africano, e de sua luta contra o colonialismo interno, que impôs a hierarquia racial na sua forma mais brutal.
Nos dois anos em que vivi em Pretoria dediquei-me a estudar a história daquele país, através dos livros de história, de poesia, de literatura, pela televisão, pelas conversas com as pessoas, pela música, pelo cinema, por uma “leitura” das paisagens e do ambiente. Ali pude apreciar a importância e a grandeza da atitude de Nelson Mandela, ao pregar em favor da reconciliação e da reconstrução ao invés de vingança e retribuição da violência, como ocorreu no Zimbabwe, por exemplo.
Mandela foi aprisionado por 27 anos pelo regime racista, testemunhou de perto os horrores da repressão e do terrorismo de estado, das lutas étnicas, quando o governo branco resolveu investir dinheiro e armamento no Inkhata Freedom Party, como uma força entre as etnias negras para lutar contra o African Nationalist Congress (ANC), jogando negros contra negros, dos massacres contra a população negra e dos assassinatos dos líderes da resistência. A prisão para este homem não foi o fim de sua liderança ou de seu discernimento político, mas foi uma continuidade de sua formação e de sua contribuição na luta por justiça em seu país.
Ao contrário do que muita gente pensa, a segregação racial na África do Sul começou muito antes de 1948, quando o Partido Nacionalista subiu ao poder. Na verdade, leis de segregação e de opressão à população negra ou nativa foram incorporadas à legislação desde o período de dominação inglesa, logo após a Guerra dos Boeres, na virada do século XX. Leis proibindo o casamento interracial, limitando o acesso à educação e proibindo negros de votar, marcaram o governo inglês, mas as leis mais perversas foram a Lei de Terras de 1913, que proibia a propriedade de terras a nativos fora das (reduzidas) reservas e a Lei de Reforma Urbana, de 1923, que delimitava áreas para ocupação de brancos, negros e coloureds dentro da cidade. a Lei dos Passes, que impunha aos negros a posse de um “passe” ou direito de trânsito quando fora de sua reserva, existia desde o século XIX e foi imposta à população urbana, que poderia ser presa quando encontrada fora de sua área e sem o passe que justificasse sua presença no local.
Mandela disse uma vez que se as pessoas podem aprender a odiar, elas também podem ser ensinadas a amar. A superioridade racial branca era ensinada e praticada nos mais diversos níveis. Em 1922, durante uma manifestação de trabalhadores de minas por melhores salários, os manifestantes brancos exibiam uma faixa com os dizeres: “WORKERS OF THE WORLD, UNITE AND FIGHT FOR A WHITE SOUTH AFRICA”, entre as reivindicações dos trabalhadores brancos estava a redução do número de trabalhadores negros, vista como uma forma de manter os salários baixos, e o acesso exclusivo de brancos a cargos de supervisão.
Quando Mandela nasceu, numa reserva de nativos no interior da África do Sul, seu país era ainda dominado pelos ingleses, e ele foi levado aos sete anos para uma escola metodista, onde o professor lhe deu um nome “cristão e civilizado”: Nelson. Em suas memórias, ele afirma que desde muito criança sabia que deveria tratar os brancos com um misto de respeito e medo, reconhecendo neles o poder sobre as vidas dos negros. Sem esquecer suas raízes, Nelson continuou seus estudos na escola metodista chegando até a universidade, onde estudou sociologia, antropologia e inglês; em seguida ele entrou na Escola de Direito da University of South Africa, infelizmente ele terminou seus estudos no primeiros ano do regime do Apartheid (agora sob o domínio dos afrikaners, que substituíram os ingleses), e a universidade lhe negou o diploma de advogado.
Quando o Apartheid foi instalado na África do Sul, com a missão de radicalizar a segregação racial e maximizar o controle dos brancos sobre o restante da população, ele já era membro da diretoria executiva do ANC, órgão de resistência criado em 1914. Após finalmente conseguir sua licença como advogado, no início dos anos 50, Mandela montou escritório com outros membros do ANC, atuando principalmente em questão trabalhistas e contra a brutalidade policial contra os negros.
Naquele momento, as lutas de independência e descolonização varriam o continente africano, e o Pan-Africanismo crescia em atuação política e intelectual, com o desenvolvimento das teorias africanas anti-colonialismo e a valorização da filosofia africana. Fortalecia-se assim, a base intelectual contra o racismo e o colonialismo. Por outro lado, a Guerra Fria teve também grande influência nos movimentos em países africanos, quando a União Soviética decide apoiar os movimentos de independência com ajuda financeira, armamento, treinamento e formação política. Como era de se esperar, havia diferentes interpretações e vertentes para estes movimentos, apontando para diversas visões não somente entre as nações africanas, mas dentro dos países que lutavam pela liberdade. Na África do Sul não foi diferente.
Em 1950 quando trabalhadores indianos e africanos planejavam uma greve geral, Nelson Mandela foi contra a coalizão, por acreditar que os negros deveriam manter-se como uma unidade separada, ele ainda olhava os comunistas como suspeitos e pregava por uma resistência africana exclusivamente negra. Quando a proposta de greve geral ganhou, porém, Mandela demonstrou seu espírito conciliador acatando a decisão da maioria, e a partir de então passou a estudar os escritos da filosofia política marxista e mesmo a acompanhar a campanha de Gandhi. Muitas dessas leituras ele foi incorporando ao seu discurso e à sua prática.
A repressão sobre os membros da ANC era massiva, levando líderes à prisão ou à proibição dos discursos públicos ou qualquer outra manifestação política. Em 1955, Mandela e outros líderes sul-africanos percebem que a única maneira de derrotar o regime racista seria através da luta armada, postura que vinha sendo adotada por diversos países da África e da Ásia. A ajuda externa porém estava controlada, e o movimento demorava em ganhar peso.
Enquanto isso a repressão continuava, e Mandela foi preso por várias vezes, até ser levado a julgamento, em dezembro de 1956 a maioria dos membros do ANC foram presos acusados de alta traição (crime pelo qual a sentença máxima era o enforcamento), a defesa trabalhou bem, as acusações foram temporariamente retiradas em 1958 e os acusados postos em liberdade, e presos novamente em 1960, sob a mesma acusação, permanecendo mais três meses na prisão.
Influenciado pelos escritos políticos marxistas e pela prática dos comunistas de conscientização através da educação, os ativistas do ANC, entre eles Mandela, ocupavam seus dias na prisão em discutir política e educar outros prisioneiros sobre seus direitos e sobre a justiça. Neste momento, o diálogo já se expandia incorporando elementos da revolução cubana e da revolução cultural na China. Entre as cartilhas estudadas pela resistência na África do Sul estavam os escritos de Che Guevara sobre a revolução e táticas de guerrilha e as cartilhas de Mao Tsé Tung.
Ao lado dessas táticas mais belicosas, o movimento de resistência contra o Apartheid adaptava outras estratégias, aprendidas do movimento negro por direitos civis nos Estado Unidos, como por exemplo o boicote aos transportes urbanos. Esta estratégia foi particularmente eficaz nas grandes cidades, como Joanesburgo, onde a maioria da população trabalhadora, vivia fora dos limites urbanos – devido às leis de segregação – e dependiam do transporte para chegar ao seu local de trabalho; em suma, o boicote ao transporte urbano levou ao mesmo efeito de uma greve geral.
Um outro tipo de boicote foi utilizado como estratégia política no início dos anos 60, desta vez, o apelo era feito aos governantes dos países estrangeiro, para que não fizessem negócios com a África do Sul enquanto a situação interna não fosse resolvida. Este apelo foi mais veemente em 1960, quando o governo branco liderou o massacre de manifestantes desarmados, em Shaperville, que protestavam contra a imposição dos passes urbanos, cerca de 70 pessoas foram mortas e mais de 180 feridas durante o ataque violento dos policiais. Naquele momento, mais uma vez, políticos contra o Apartheid clamaram às autoridades estrangeiras para que boicotassem a África do Sul, em 1962 eles finalmente tiveram o apoio das Nações Unidas.
Enquanto a pressão externa e interna contra o regime de supremacia branca aumentava, aumentava também a repressão interna e os atos de violência de ambos os lados. Mandela, como representante do ANC faz diversas viagens ao exterior dentro e fora do continente africano. O MK, braço armado do ANC, avançava em táticas de guerrilha, colocando bombas em alvos estratégicos. Em agosto de 1962, Mandela foi preso, acusado de incitar greves e de deixar o país sem permissão oficial; no ano seguinte, ele foi acusado de liderar ações terroristas e de atividades comunistas. A sentença inicial que pairava sobre os acusados era a pena de morte por enforcamento, à qual a opinião pública mundial reagiu intensamente. Foram inúmeros os pedidos de clemência, aos quais o governo atendeu sentenciando os acusados à prisão perpétua.
Ao todo foram 27 anos de prisão, com períodos de trabalhos forçados, várias punições com isolamento por quebrar a regra que impunha a total restrição ao acesso a notícias do mundo exterior, Mandela foi pego várias vezes com recortes de jornais que eram contrabandeados para dentro de sua cela.
Desde os primeiros meses, ao invés de se deixar abater pela prisão, Nelson Mandela tomou uma atitude surpreendente: percebeu haver falhas na sua formação como advogado (ele foi seu próprio defensor) e se inscreveu num curso por correspondência para um novo diploma em direito, desta vez pela Universidade de Londres. Sempre que podia, mantinha conversas com outros prisioneiros e mesmo com funcionários da prisão, de forma que manteve-se informado sobre o desenrolar dos acontecimentos em seu país.
Percebendo que o analfabetismo e o semi-analfabetismo predominava entre os presidiários, ele iniciou – com a colaboração de outros – cursos de alfabetização e outras aulas em diferentes tópicos para ampliar a consciência política dos prisioneiros e o que a princípio foi proibido pelas autoridades, foi depois tolerado como uma forma de manter a paz interna no presídio – os prisioneiros fizeram várias greves de fome – e ao mesmo tempo apaziguar a opinião pública internacional. Muitos dos prisioneiros passaram então a fazer cursos por correspondência na University of South Africa. Mandela tornou-se o defensor dos direitos dos prisioneiros, denunciando desmandos e abusos dos dirigentes da prisão aos juízes corregedores, de forma que as condições que antes eram precárias foram melhorando aos poucos.
Entre os anos 60 e 80 o antagonismo cresceu na África do Sul, com movimentos de estudantes e greves operárias desafiando as determinações do governo autoritário. Nos anos 70 a influência do comunismo e do socialismo no movimento trabalhista aumentou, da mesma forma que as idéias liberais, fazendo com que os sindicatos passassem também a pedir o fim do Apartheid. Em 1976, um protesto de estudantes de uma escola secundária no Soweto contra a imposição de aulas no idioma afrikaans deixou um número estimado de cerca de 200 mortes. Novos protestos vieram do exterior, porém a política da Guerra Fria fazia com que o governo de países poderosos como os Estados Unidos e a Inglaterra mantivessem seu apoio ao regime racista africano, como forma de conter uma possível revolução comunista no país.
Um fato interessante que marcou o início da decadência do regime segregacionista na África do Sul foi a nomeação de um embaixador negro para representar os Estados Unidos naquele país entre 1986 e 1989. O embaixador Edward Perkins nascera na Louisiana, em 1928, tendo ele mesmo enfrentado as políticas segregacionistas nos Estados Unidos. Na África do Sul ele pode testemunhar a situação da maioria da população, sendo ele mesmo vítima, como quando numa ocasião em que estava viajando pelo país e foi recusado hospedagem num dos hotéis de luxo sob o pretexto de que de acordo com as leis do país, apenas pessoas brancas poderiam ficar naquele hotel. Ele foi certamente uma das vozes a influenciar o governo Reagan a se posicionar contra o Apartheid.
Em 1988, o mundo celebrou o aniversário de 70 anos de Nelson Mandela num grande concerto que atraiu estrelas da música mundial em Londres.
Mas foi apenas 1989, com a queda da União Soviética que finalmente países como Estados Unidos e Inglaterra entraram no boicote comercial à África do Sul, este fato foi determinante para a queda do governo, em meio a uma severa crise econômica e ao aumento da violência interna. Naquele mesmo ano o governo sulafricano liberou todos os prisioneiros políticos ligados ao ANC incondicionalmente, com excessão de Nelson Mandela.
Aparentemente os líderes do Partido Nacionalista ainda viam naquele senhor de mais de 70 anos, enfraquecido pela tuberculose e pelos anos de aprisionamento, um feroz inimigo. Na verdade, os governantes tentavam evitar uma revolução radical, como acontecera em outros países e negociavam com a ANC uma transição equilibrada para um regime mais liberal.
Estavam certos os que temiam a força de Mandela, libertado finalmente em fevereiro de 1990, aquele que o mundo viu caminhando ovacionado nas ruas de Joanesburgo não era um homem velho e decadente, mas um verdadeiro líder do povo. Porém, aquele ainda não era o fim do Apartheid.
Em liberdade, o grande líder do ANC tinha agora outros desafios para enfrentar, entre eles as divisões internas de sua organização e o desafio de transformar o African National Congress de um movimento de resistência política num partido político. Maior ainda era conter a violência de grupos exaltados tanto pela potencial perda de direitos (entre os brancos) quanto pela lentidão da libertação final (entre os negros). Em 1992 os confrontos armados continuavam; na cidade de Bisho, 29 pessoas morreram, a maioria civis, quando a polícia abriu fogo contra manifestantes.
Nelson Mandela tornou-se a força moral capaz de controlar as massas na África do Sul, e o fato dele ter optado pela conciliação entre as diferentes correntes políticas e seguimentos raciais do país e pela união na reconstrução da África do Sul garantiu-lhe o apoio de brancos e coloureds. Ainda no ano de 1992, ele se divorciou de Winnie Mandela, acusada de crimes contra opositores e rivais entre os quais adolescentes negros do Soweto. No mundo exterior, Mandela concentrava-se em angariar o apoio político e econômico necessário à recuperação de seu país, no âmbito interno, ele passou a promover encontros entre as diferentes facções, ouvindo opiniões e críticas de diversos setores, mas acima de tudo, pedindo-lhes que colaborassem neste plano de criar na África do Sul uma nação multirracial, que ele denominou Nação Arco-Íris, em referência à diferentes nuancias de cores e raças que a compõem.
Eleito presidente desta nova África do Sul em 1994, ele manteve o compromisso pela recuperação econômica, mas também em remediar situações graves de desigualdades internas, como o acesso à educação e ao saneamento básico, e da epidêmia de AIDS que dizimava a população e que ainda hoje se apresenta como um grande desafio. A Comissão de Verdade e Reconciliação foi instaurada com o apoio da Igreja e sob a liderança do Bispo Desmond Tutu, para ouvir a população sobre as atrocidades e tentar superar o passado de forma definitiva. Ao final de seu mandato, apesar do apoio popular, ele resolveu não se candidatar à reeleição, mas deixar a tarefa para políticos mais jovens como Thabo Mbeki, que o sucedeu. Mesmo fora do governo, Mandela dedicou os quinze anos seguintes à causas relacionadas ao combate à AIDS, apoiando o governo em diversas outras áreas.
Mandela morreu vinte e três anos depois de sair da prisão, ainda como o grande líder, que combateu a injustiça e o racismo durante toda a sua vida, que se dedicou a prender mais para ampliar sua capacidade de argumentar em favor dos necessitados, que ouviu diferentes vozes, mas que não cedeu em restabelecer a liberdade em seu país. A África do Sul ainda tem muitos desafios a superar, assim como o mundo os tem. Mas Nelson Mandela vai se juntar à galeria dos grandes nomes que viram sua liderança e poder de influência como oportunidade de servir à sua gente, e ao servir ao seu povo ele deu um exemplo ao mundo inteiro.
Valeu Mandela.
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Elaine P. Rocha é historiadora formada pela Universidade de Taubaté, com mestrados pela PUC de São Paulo e University of Pretoria, África do Sul, e doutorado em história social pela USP. Professora de História da América Latina na University of the West Indies, Barbados.
2 Comments
Exemplo de homem! Devemos aprender com ele como amar as pessoas.
Exemplo de homem! Devemos aprender com ele como amar as pessoas.
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