Uma pequena antologia poética de Cesídio Ambrogi

 Uma pequena antologia poética de Cesídio Ambrogi

POEMA DO PASTOREIO

Nasci pastor. Aos vinte anos,
por verdes campos risonhos,
andei tangendo ilusões…
-meu rebanho era de sonhos.

Agora, além dos sessenta,
ao peso dos próprios anos,
pastoreio outro rebanho…
-hoje, só de desenganos.

E no meu velho cajado,
que é o mesmo da mocidade,
ainda me apoio a sonhar…
-mas chorando de saudade.

1963

***

MINHA TERRA

Meu vilarejo – um cromo estilizado:
O Largo da Matriz. Uma palmeira.
A cadeia sem preso nem soldado.
Calma em tudo. Silencio. Pasmaceira.

Andorinhas em bando, no ar lavado.
O rio. O campo ale de uma porteira.
Um velho casarão acaçapado
-Nossa casa tranqüila e hospitaleira.

O cruzeiro lá em cima, em plena serra,
Braços abertos para minha terra…
E eu criança e feliz. Que doce idade!

Hoje, porém, meu Deus, quanta emoção!
Do meu peito no triste mangueirão,
Cavo e soturno, o aboio da saudade…

In “São Paulo dos Meus Amores” – Afonso Schmidt – Ed. Brasiliense – São Paulo

Publicado no jornal “Estilo”, do Colégio Estadual e Escola Normal Monteiro Lobato, na edição nº2, de outubro e novembro de 1950

***

JECA, O FILÓSOFO

Amiúdam galos. E, de manso, a terra
Desperta. Ruflam asas. Sopra a aragem.
E o sol, que surge por de trás da serra,
Aloira toda a matinal paisagem.

Um cão ladra distante. Longe berra,
Transmalhada, uma cabra na pastagem;
De uma choça a janela se descerra,
A emodulrar do Jeca a triste imagem.

Deslumbrado, entusiasmado da natura,
Exclama ante a paisagem que fulgura.
-“Sim sinhô. Ta fermoso de encanta!”

E, em seguida, tomando a “troxada”:
-“Cum dia ansim só mermo uma caçada…
Inté é pecado a gente trabaiá!”

“AS MORENINHAS” – pág. 86

***

INDISCREÇÃO

Lusco-fusco. Madrugada.
A noite finda-não-finda.
Por tudo, a paz sossegada;
Em tudo, silencio ainda.

De repente, a longa estrada, 
Ao meu olhar se deslinda,
E, a um beijo de luz dourada,
A terra toda se alinda.

Ante o sol, noivo risonho,
A manhã, cheia de sonho,
Cora e, indecisa, sorri.

Enquanto alguém, neste instante,
Grita, pilhando-a em flagrante:
-“Vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi!”

(Publicado em “O Momento” – 31/1/43 – com o pseudônimo C.)

***

E LÁ VAI O TREM…

Lá vai o “Trem da Nação”:
– “Kubicheque-kubicheque…”
Lá vai ele, vai rolando,
Sem nenhum freio nem brequ.

Lá vai ele: – “Piú! Piú!
Kubicheque-kubicheque…”
Que beleza! Como corre!
– “Sacacheque-emitecheque…”

Corre, corre… Vai cheiinho
E rolando direitinho…
Ninguém nele já mais cabe.

Mas, eis pergunta alguém:
-“Para onde irá esse trem?”
-“Não se chabe, não se chabe…”

1960

***

PROMETEU SUBURBANO

Tenho uma vontade grande
de sair pelo mundo sem destino
de ir-me à-toa,
como uma folha morta
ao capricho de todos os tempos,
ao acaso de todos os caminhos.

Tenho um desejo imenso
de me largar pelo mundo
-navio sem leme nem bússola,
na delícia de um de-déu-em-déu
ao deus-dará.

Deus, porem, me fez trapo
– trapo humano, já se vê –
e me cingiu a inércia do trabalho
preso a lama da terra.
Mas Ele é bom. E deixa
que minha cabeça viva entre as estrelas…

(de “Poemas Vermelhos”)

***

O “PROFESSOR CORVO-LOUCO”

Preto retinto. Esguio. Amável e sorridente. Colarinho alto. Gravata preta. Fraque e cartola. Flor a lapela. Um livro de baixo do braço. Contemporâneo do Frontin e precursor de Chamberlain – com o indefectível guarda-chuva. Sempre azafamado.
Eis aí, em dois traços, todo o perfil desse modestíssimo cidadão Antonio de Souza – por alcunha, “professor Corvo-Louco”.
Poucos, talvez, ainda se recordem dele. Raros, por certo, lhe cultuarão a memória, reconhecendo-lhe os méritos de educador, que lhe assinalavam a personalidade do legitimo pioneiro do magistério particular em Taubaté.
Trabalhador infatigável, fazendo da bondade um verdadeiro apostolado, ele parecia sentir-se feliz sempre que conseguia enfiar na cabeça do analfabeto – quase sempre um adulto -, pacientemente, como luminosas pontas-de-lança, as “primeiras letras” e as “quatro operações” fundamentais.
Com seus minguados recursos intelectuais, que não iam muito alem do “ABC” e dos rudimentos aritméticos, quase analfabeto ele próprio, ainda assim Antonio de Souza, e é preciso que se lhe faça justiça, conseguiu prestar relevantes e inestimáveis serviços à sociedade taubateana.
Dezenas de pessoas, inclusive elementos de preponderante destaque no comércio e nas industrias da cidade, lendo esta croniqueta, estamos certos, se lembrarão com certa emoção do professor modestíssimo que lhes servira de primeiro guia, ensinando-os a ler e a contar.
Nesta hora de festas para Taubaté, quando comemoramos o centenário de sua elevação a categoria de cidade – que esta nossa pagina seja uma homenagem simples, mas comovedora e piedosa, à memória de Antonio de Souza – o “professor Corvo Loco”.
Humilde, quase miserável, sem placa que lhe imortalize o nome, mas sempre sereno e alheio à zombaria covarde de todos os zoilos, – ainda hoje ele é bem o símbolo de todos esses nossos pequeninos anônimos conterrâneos que, sem ruído nem estardalhaço, mas na diuturnidade do seu trabalho honrado, muito fizeram e fazem pela grandeza desta terra que lhes servira de berço, e pelo bom nome de nossa gente.
Estamos certos de que os poderes competentes, neste mês do centenário da cidade, perpetuassem o nome do cidadão Antonio de Souza numa das placas de nossas ruas, – onde tantos gralhos se encontram imortalizados, a alma agradecida do povo taubateano, que, na verdade, se revestiria tal gesto.
Não seremos ouvidos, certamente. Mas, mesmo assim, aqui fica a sugestão. Os homens dificilmente poderão compreender o quanto havia de nobre e de puro idealismo na alma iluminada de um paria, de um simples e anônimo “professor Corvo-Louco”…

(Crônica publicada em “O Momento” – 5/2/1942 – com o pseudônimo C, na seção “Taubaté-Social”)

 

[box style=’info’] Cesídio Ambrogi (1893-1974)

Nasceu em Natividade da Serra-S.P. Em 1904 muda-se com a família para Taubaté. Jornalista militante, colaborou, por meio século, em periódicos de São Paulo. Tomou parte ativa na vida artística e literária valeparaibana.
Em 1923 tem seu livro de “As Moreninhas” editado pela Monteiro Lobato Editores. A partir daí nasce uma amizade que, em parte, é registrada nas dezenas de cartas, ainda inéditas, que Lobato enviou ao escritor.
Em 1947 lança o livro “Poemas Vermelhos” prefaciado por Monteiro Lobato. A obra tem grande repercussão na crítica literária da época.
Fez parte do grupo de intelectuais que instituíram a “Semana Monteiro Lobato”.
Permeada pela poesia e pelo amor as tradições populares, a obra de Cesídio Ambrogi apresenta o dom poético e a arte de versejar que o fizeram um dos mais importantes poetas paulistas. [/box]

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6 Comments

  • Ângelo Rubin. Fiquei durante muito tempo procurando "Minha Terra", esse soneto sem verbos de autoria do meu querido professor Cesídio, que o fez em homenagem a sua terra natal, Natividade the Serra. Só fui encontrá-lo novamente há alguns anos, no Google. Ele fez também um outro, de uma só sílaba: Deus vê que meus ais não são mais que dor por ti ó flor. São duas raridades the língua portuguesa.

    • É impressionante o que o mestre Cesídio fazia com um pedaço de papel e algo para escrever. O domínio sobre as palavras, que saem da pena como brincadeira, leve e densa ao mesmo tempo. Poucos foram os que conseguiram usar com tanta liberdade as palavras. Quer exemplo maior que um soneto sem verbo e um com palavras de uma só sílaba.
      Que essa memória não se apague.

    • Tive o privilégio de ser uma humilde aluna desse ser carismático, no Estadão.

    • Carismático sim, Maria Helena Rocha Florio. Eu também me orgulho de ter sido aluno do nosso querido Cesídio, em quase todos os anos em que estudei no Estadão.

    • Só não fui aluno dele em um ou dois anos. Em todos os demais, tanto no ginásio como no colegio (científico), só deu Cesídio. E mesmo quando não era ele o mestre, eu tive o também maravilhoso Professor Gerônimo de Souza. Só me resta agradecer a eles.

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