UMA GUERRA QUE FOI VÁRIAS
Cabanagem. Você com certeza já deve ter ouvido falar nela, mas não sabe muito bem do que se trata. No mínimo sabe que foi uma revolta regencial que aconteceu no Norte do Brasil. Com sorte saberá que o nome vem dos cabanos, os moradores pobres e marginalizados dos mocambos da então Província do Grão-Pará e Maranhão. Caio Prado Júnior foi um dos primeiros historiadores a pesar o valor desse movimento. Para o historiador paulista ali estava uma tentativa dos pobres de tomarem o poder do Brasil que começava a respirar os ares da independência. Os pesquisadores que vieram a seguir ressaltaram esse poder revolucionário da revolta. Décio Saes, por exemplo, estabelece uma conexão entre o ideal iluminista e as reivindicações dos cabanos.
Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro dedicou um trabalho sobre o movimento: Visões da Cabanagem. Um trabalho historiográfico. Com isso nos apresentou as linhagens de historiadores que se debruçaram sobre esse tema. Como era de se esperar, cada uma viu a Cabanagem de uma maneira: revolta bestial, episódio cívico, revolução social, etc. Em certo momento ele arrisca uma interpretação sua sobre a revolta. Afirma que a própria Cabanagem não foi movimentada por um mesmo ideal devido á sua heterogeneidade: as elites locais queriam voltar a se vincular á Portugal, os índios e cabocos queriam terras, os negros queriam deixar de ser explorados, etc.
A ciência histórica tem sido convidada a trabalhar com conceitos complexos como “diversidade” desde que os velhos esquemas onde o homem era enquadrado nas estruturas e nas teorias, como se fosse mais um número em uma equação, começaram a ruir nos últimos anos do século passado. Agora o historiador tem de se acostumar com as perguntas, os problemas, o singular e, principalmente, o diverso. Logo, toda unanimidade se torna duvidosa. Não só duvidosa, mas potencialmente perigosa: afinal, com isso estamos afirmando que todos pensam como nós, excluindo a diversidade e a alteridade.
Essa introdução toda para chegarmos ao real assunto do dia: a Revolta Constitucionalista de 1932. Eis aí um evento que poucos se arriscam a interpretar de outra forma senão aquela do heroísmo paulista contra o governo varguista. O que diz tradicionalmente a historiografia? Essa foi uma guerra civil que estourou por conta das aspirações democráticas e constitucionais dos paulistas devido ás ações de Getúlio Vargas que já acenava em direção a um governo autoritário. Será que todos os paulistas que combateram no front de batalha acreditavam estar lutando pela Constituição?
Mário de Andrade já na época dizia que muitos não tinham a menor ideia do que significa “constituição”. Alfredo Ellis Júnior, historiador e voluntário na guerra, relatava que muitos defensores da revolta não foram ao campo de batalha, deixando esse serviço para os mais jovens e menos instruídos. Oswald de Andrade no livro Marco Zero fala de um soldado que se alistou por causa da bóia.
No livro São Paulo 1932: Memória, Mito e Identidade, os pesquisadores André Mota e Marco Cabral dos Santos tentam demonstrar como a revolta foi um movimento que nasceu de uma confluência dos mais variados motivos. Eles esposam a tese do brasilianista Stanley Hilton de que se tratava, no início, de uma tática da oligarquia paulista tentando recuperar o poder perdido no momento em que a República Velha acabou, mas que tomou proporções de uma revolta de massa por causa da eficiente máquina de propaganda montada por essa elite.
Os principais motivos para se defender a causa constitucionalista passavam pelo ideal liberal e legalista de defender a nossa Carta Magna ou então pelo regionalismo que acreditava que tinha sido ferido com as imposições do governo central. Havia também teses anticomunistas e racialistas em jogo: havia quem visse em Vargas um protótipo de bolchevique, como é o caso de Ibrahim Nobre, ou mesmo aqueles que entendiam que o Brasil se degeneraria mais rápido caso não fosse adotada a política de imigração que foi adotada em São Paulo, como o Dr. Franco da Rocha.
E a propaganda constitucionalista apelava para métodos não tão ortodoxos como oferecer alimentos em troca do alistamento ou mesmo desafiar a virilidade dos que não se oferecessem como combatentes. Com todas essas evidências por que esse conflito tem sido visto pelo prisma do civismo? A resposta está nos livros escritos durante e depois da guerra. Holien Bezerra afirma que entre 1933 e 1937 foram publicados mais de 150 livros sobre o assunto. A maioria ressaltando o aspecto liberal e cívico do evento. Assim se construiu o consenso de 1932 que foi desvelado por pesquisadores como Bezerra, Hilton, Santos e Mota.
E Taubaté? Como ela fica nesse processo? A cidade participou da guerra oferecendo apoio logístico á “causa constitucionalista”, inclusive na forma de batalhões de voluntários. O mais conhecido foi o Batalhão Jacques Félix, organizado por Joviano Barbosa, Juvenal Machado, Joaquim Manoel Moreira e tendo o padre João Cardoso como capelão. O nome honrando um símbolo da identidade paulista de então: o bandeirante. E os seus idealizadores eram homens de renome, como Joviano Barbosa, envolvido com a política e com a música taubateana bem como boa parte da sua família. Mas quem mais participava desse batalhão? Pessoas pobres ou varões da elite? Esse batalhão foi para Cunha onde se uniu ao 4ª Batalhão de Caçadores comandados pelo coronel Veiga Abreu que venceu os Fuzileiros Navais e a Polícia do Estado do Espírito Santo, enquanto estes bombardeavam o Espigão do Mestre com seus canhões.
Enquanto o conflito acontecia na fronteira com o Rio de Janeiro, Taubaté entrava no clima da guerra. Na Estação Central do Brasil também tivemos a Cantina do Soldado de 1932 onde senhoras serviam os voluntários 24h por dia. Que senhoras eram essas? Eram “damas da sociedade”? A delegacia técnica militar do MMDC passou a funcionar na antiga Câmara Municipal. Percebam o envolvimento do poder municipal com esse evento autônomo.
O delegado criou uma guarda municipal para vigiar a cidade a noite toda e prender os derrotistas, opositores e suspeitos de espionagem. O trânsito entre os municípios foi proibido para quem não tivesse livre-induto. Como se conseguia esse livro-induto? O que bastava para classificar um derrotista ou opositor, no calor do momento?
Os industriais como Audrá e Guisard fizeram generosas doações ás mulheres dos combatentes. Mais uma vez quem enxergamos á frente de todas as ações são figuras públicas ligadas ao governo ou á elite local, como o empresariado. E o resto da população? A historiadora Maria Cristina Soto diz que a população nem ligou, porque com o fim da guerra não se vê, nos documentos, nenhuma espécie de manifestação popular lamentando a derrota.
Em Taubaté, um estudo sobre a Revolução Constitucionalista pode demonstrar como esse consenso é falso e como ele foi fabricado. Não se trata de destruir um consenso para construir outro, mas de entender como a diversidade, que é inerente ao homem e onipresente em sua história, se inseria nesse momento tão crucial para se entender São Paulo. A tendência atual é enxergarmos os movimentos sociais, culturais e políticos como movimentos multifacetados. Essa é a lição de Luís Balkar, de André Mota e Marco Cabral dos Santos para aqueles que se aventuram na pesquisa histórica.
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