(Por Elaine Rocha)
O rosto de Bob Marley é uma das imagens mais populares no mundo moderno, reconhecida em qualquer parte do mundo, tanto quanto a música reggae, que conquistou o mundo a partir da década de 70 e que hoje já ganhou adaptações no mundo inteiro, sendo tocada em lugares como o Japão e Israel.
A popularidade do ritmo é admirável, se considerarmos que é originário da Jamaica, ex-colônia inglesa no caribe, com uma área de 11mil km2, aproximadamente a metade da área de Sergipe, o menor estado brasileiro, e uma população atual de aproximadamente dois milhões e setecentos mil habitantes, na sua maioria negros e afrodescendentes.
E o que é ainda mais admirável é o fato de uma tendência musical ter se tornado um “movimento”, que no mundo inteiro leva mensagens de liberdade, respeito e principalmente de luta anti-racismo. Elementos da chamada cultura reggae confundem-se com o rastafarianismo e são reproduzidos por toda a parte, seja nos cabelos em dreadlocks ou no uso das cores amarelo, vermelho e verde da bandeira rastafari, porém poucas pessoas sabem sobre a história do movimento reggae (que associa o rastarianismo com o ritmo musical) e como ele se tornou tão importante no Brasil.
Essa mistura de elementos culturais que encontramos hoje no reggae tem início nas primeiras décadas do século XX, graças à influência política internacional de um outro jamaicano: Marcus Garvey. Líder do Movimento Nacionalista Negro nos Estados Unidos e do Pan-Africanismo, sua militância anti-racista teve início durante a década de 20 quando Marcus Garvey passou a fazer parte de um grupo de negros que desafiava a política daquele país e que se concentrava no bairro do Harlem em Nova Yorque.
Garvey nasceu em uma família pobre, seu pai era marceneiro e sua mãe empregada doméstica, ele foi um dos únicos dois filhos que sobreviveram, entre os onze que seus pais tiveram. Seu pai fez questão de mandar o menino para a escola e de comprar livros para completar a educação do menino. A falta de oportunidades na Jamaica levou Garvey a partir aos 19 anos para tentar a sorte numa das muitas companhias inglesas que levavam caribenhos para trabalhar em lugares como o Panamá, a Venezuela, o Brasil ou – no caso do líder político – na Costa Rica. Da América Central, já ciente das condições precárias em que viviam os negros e das injustiças do racismo, Garvey partiu para a Inglaterra.
Em Londres ele continuou seus estudos e cursou a faculdade de direito e de filosofia, em pouco tempo passou a escrever para um jornal orientado para a comunidade negra inglesa. Nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, Londres era um centro de atividade comercial, intelectual e política, onde Garvey teve a oportunidade de interagir com líderes negros como Booker T. Washington e Martin Delany (líderes do movimento negro Americano), além de trabalhar diretamente com Dusé Mohamed Ali, intellectual anglo-egípcio que pregava o Pan-Africanismo. Estes homens faziam parte de um grupo internacional que militava contra o racismo desde 1890, e que incluia vários representantes de países africanos. Foram eles que, em 1918, tentaram incluir um artigo contra o racismo e pela igualdade racial no documento que deu origem à Liga das Nações, apoiados pela delegação japonesa. Sem sucesso, eles promoveram um congresso paralelo para discutir o racismo no mundo, produzindo documentos que fundamentaram as lutas contra a segregação, o colonialismo e a discriminação racial durante o século XX.
Garvey era um dos jovens promissores deste grupo, e foi convidado por Booker T. Washington para visitar os Estados Unidos em 1916, infelizmente Washington faleceu antes que seu hóspede chegasse, mas os seguidores do grande líder americano promoveram as palestras do jamaicano, que em pouco tempo se tornou uma estrela entre a liderança do movimento negro nos Estados Unidos.
O grande apelo do discurso de Garvey era a questão da educação e da cooperação entre negros para promover o sucesso econômico da raça, a música e o conhecimento da África eram partes importantes do projeto educacional e as idéias do líder foram aos poucos conquistando negros em outras áreas dos Estados Unidos e, como era de se esperar, na Jamaica também.
Um dos efeitos da promoção desta aproximação – via conhecimento – da África, originou, na Jamaica a religião Rastafari no início dos anos 30. Ras Tafari é uma referência ao imperador etíope Haile Selassie (chamado Tafari antes da coroação). A Etiópia havia derrotado os italianos em 1895, quando estes tentaram estabelecer ali uma colônia, com isso o país do leste africano passou a ser reconhecido como uma força anti-colonialista na África, o único país africano a não cair nas mãos no colonialismo europeu. Na década de 30, nova tentativa italiana levou o imperador Haile Selassie a se pronunciar na Liga das Nações contra o racismo e o colonialismo. Nascia um mito.
A religião rastafari é muitas vezes chamada de um “judaísmo” negro, devido a semelhanças nas práticas, porém o messias rastafari já nasceu, e é venerado na figura de Haile Selassie, que governou a Etiópia entre 1930 e 1974. As cores da bandeira rastafari ressaltam o Pan-Africanismo: o amarelo significa as riquezas da África, em particular o ouro; o verde significa a fertilidade da terra prometida, que seria a Etiópia; e o vermelho significa o sangue dos mártires e heróis negros/africanos que morreram pela liberdade. No centro da bandeira, o leão de Judá simboliza a força afriacana. Os etíopes dizem-se descendentes do relacionamento entre o rei Salomão (judeu) e a rainha de Sabá (etíope).
Esses dois elementos: o garveísmo (nome dado ao movimento dos que seguem a filosofia de Garvey) e o rastafaranismo influenciaram muitos negros nos Estados Unidos e na Jamaica. No século XX, era comum para os jamaicanos saírem de seu país para viver nos Estados Unidos, onde viviam em contato próximo uns dos outros. Uma dessas famílias jamaicanas que se mudou para os Estados Unidos, sendo influenciada pelas idéias de Garvey foi a família Marley.
No inicio dos anos 60 Bob Marley era mais um jovem que gostava de rock and roll e que resolveu formar uma banda com alguns amigos. Eram os primeiros anos de independência da Jamaica, e havia um certo otimismo no ar. Os rapazes da banda, apesar de admirarem o ritmo americano, sofriam ainda a influência do calypso, ritmo caribenho e do ska, um tipo de ritmo que mistura o jazz americano com o calypso caribenho. Diz a lenda que um dia, durante um ensaio, osrapazes passaram a tocar numa batida mais lenta, num ritmo mais arrastado. Nascia o reggae, palavra que tem suas origens no dialeto patois jamaicano: regue-regue, que significa relaxado, descuidado, esfarrapado e solto.
Ainda nos anos iniciais da banda, Bob conheceu Rita e passaram a viver juntos, casando-se em 1966, quando o casal se mudou para os Estados Unidos. Lá Bob teve contato com as tendências da música negra americana e com o movimento negro por direito civis que mobilizava a população negra em várias cidades e ganhava grande projeção na mídia.
Ainda em 1966, Rita estava na Jamaica quando Haile Selassie visitou a ilha, o impacto da visita fez com que a então esposa de Bob Marley se convertesse ao rastafarianismo, levando em seguida seu marido. Aos poucos, o reggae de Bob Marley foi mudando, seu cabelo crescendo e formando os dreadlocks e as músicas, que antes nada mais eram do que baladas de amor, foram adquirindo um discurso politico, no qual claramente se distinguem a influência de Garvey e da filosofia rastafari.
Entre 1968 e 1972, Bob Marley e sua banda tentaram apoio nos Estados Unidos e na Inglaterra, para alcançarem sucesso como músicos. Em 1972 ele partia em turnê pela Inglaterra, e em 1974 Eric Clapton gravou I shot the sheriff transformando a música de Bob Marley num grande sucesso. Aos poucos o cantor e o seu novo ritmo foram se tornando conhecidos pelo público anglo-falante, incluindo a Jamaica, onde o cantor mantinha suas raízes. Em 1975 ele lançou No woman no cry, outro grande sucesso.
A partir de então Bob Marley começa a participar de grandes shows, alguns deles muito particulares, como o Festival de Música Negra, e o número de fãs cresce a cada dia e o discurso politico se aprimora.
Ainda em Londres, a música de Bob Marley chegou aos ouvidos de Gilberto Gil, que estava vivendo em exílio. O Brasil vivia então os anos de chumbo da ditadura military e o movimento negro estava quase totalmente sufocado. Digo quase porque em 1974 o bloco carnavalesco Ilê Aiye surgia em Salvador, com uma postura claramente política, contra a discriminação racial.
De volta ao Brasil, Gilberto Gil engaja-se no Afoxé Filhos de Gandhy e vai, juntamente com outros brasileiros como Clara Nunes e Martinho da Vila, participar ativamente de campanhas de apoio à descolonização dos países africanos.
Bob Marley, por sua vez, volta a Jamaica para tentar promover a paz entre partidos politicos opostos num momento de grande turbulência em seu país. Fora da ilha, ele participava de concertos pelo fim do apartheid e em apoio ao Zimbabwe.
Em 1979 Gilberto Gil trouxe o reggae para o Brasil, com Não chores mais, a versão brasileira de No woman no cry, a partir daí outros grandes nomes do reggae como Peter Tosh e Jimmy Cliff passaram a visitar o Brasil com frequência. O próprio Bob Marley esteve no Rio de Janeiro em 1980, quando se encontrou com Gilberto Gil, Chico Buarque de Holanda e Toquinho.
Pouco a pouco o reggae foi entrando na cultura musical brasileira, que incrementou na batucada, aumentando a influência dos tambores, adotou os elementos politicos da música e, principalmente a partir de 1985, cresceu junto com o movimento negro e com a tendência de valorização da raízes africanas na nossa cultura.
A música e a cultura reggae resgatam elementos do movimento negro internacional com temas como a beleza negra, o respeito à diversidade racial e o fim do preconceito. Os cabelos longos embaraçados e enrolados foram ficando cada vez mais populares e a morte de Marley em 1981 e de Peter Tosh em 1987 contribuíram para aumentar o mito.
Hoje encontramos as cores da bandeira rastafari associada ao movimento reggae em todo o país: a música reggae é tocada nos bares da periferia de São Luís do Maranhão, nas praias de Porto Alegre e Santa Catarina; a Bahia misturou e criou uma nova tendência: o samba-reggae, e o movimento negro associou o nome à militância criando o Afroreggae no Rio de Janeiro, que luta contra a exclusão racial. Em Salvador, o Olodum adotou as cores da bandeira rasta e as letras das músicas de Marley continuam a ser traduzidas e adaptadas ao gosto brasileiro.
A chamada da música do jamaicano: “Stand up for your rights”, que poderia ser traduzido como “levante-de e lute por seus direitos”, ecoa nas vozes dos brasileiros que desafiram o sistema para denunciar as práticas visíveis e invisíveis do nosso racismo. O reggae veio somar com a tradição brasileira de expressar através da música seus anseios politicos e de dançar enquanto faz suas denúncias contra a injustiça.
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Elaine P. Rocha é historiadora formada pela Universidade de Taubaté, com mestrados pela PUC de São Paulo e University of Pretoria, África do Sul, e doutorado em história social pela USP. Professora de História da América Latina na University of the West Indies, Barbados.