Seres estapafúrdios
Por Teteco dos Anjos
A humanidade é um bicho disforme, de multiplicidade infinita, desorganizado, estapafúrdio, tragicômico. Na semana passada, por ocasisão do dia de Nossa Senhora Aparecida, um ateu, não-romeiro, não-católico, nem homem de fé, recebeu uma graça. Desempregado, durango e morrendo de fome, viu na tv que voluntários distribuíam lanche para os romeiros em três pontos da Via Dutra em Taubaté; sob a entrada de acesso ao bairro da Independência, sob o viaduto de acesso à avenida JK e outro, próximo à passarela perto do Shibata. Não teve dúvida. Saiu de sua espelunca na Estiva e, travestido de romeiro, foi tomar café da manhã no primeiro ponto. Depois foi almoçar no segundo. E horas mais tarde, claro, foi tomar um café da tarde no terceiro ponto de auxílio aos romeiros.
E ele fez as refeições no domingo, 11/10 e na segunda, 12/10, dia da padroeira. “Você não teve medo de ser reconhecido no segundo dia” ? Perguntei a ele. “Não, porque se fosse, iria dizer que meu irmão gêmeo saiu de São Paulo um dia antes de mim”, respondeu. Que belo álibi. Bem, eu não tenho religião alguma, mas respeito os devotos de todas, e se existem milagres sob o ceú – coisa que não creio – posso dizer que a “graça” alcançada pelo não-romeiro esfomeado, de fato, aconteceu. Foi empírico. Enfim, não roubou, não matou, não recebeu propinas em armações políticas para matar a fome. E a matou. Ao menos por dois dias seguidos. Mas, fiquem tranquilos, o tal criativo e engraçado não-romeiro conseguiu emprego. Mais uma graça alcançada ???
Sou músico da noite e nem preciso dizer que pelas andanças por todos os lados e direções conheço todos os tipos inimagináveis de pessoas. Como eu já disse, a humanidade é um bicho infi8nitamente multiplo e disforme. E cada pessoa tem lá sua estranheza particular, berrante ou não, mas tem. E eu, com certeza, já estou preparado para todos os tipos de pessoas.
Uma psicanalista amiga disse que Teteco dos Anjos é um para-raio de seres estranhos. Um catalizador de românticos amalucados. E sou mesmo. Certa vez, num desses inferninhos mais decadentes que o próprio mictório do inferno, um camarada estapafúrdio, e muito, foi reclamar ao “leão-de-chácara” que queria seu dinheiro de volta, pois não havia lá nenhuma “mulher bonita”, como anunciava o letreiro lá fora. Propaganda enganosa ?! Fomos expulsos de lá quase aos tiros.
E quem conhece a noite taubateana há anos deve se lembrar da figura do “Arcas”, ou “Hari-Arcas”. Gay, dançarino, poeta, visionário. Para ele, todos nós somos a reencarnação de outras pessoas, sempre famosas e importantes na história. O detalhe principal é esse: somos sempre a reencarnação de alguém que foi importante ou fez história, na arte, na política, na guerra, em tudo. Eu, por exemplo, segundo o “Arcas”, sou a reencarnação do poeta russo Wladimir Maiakowski, um dos maiores de todos os tempos. Claro, fico muito lisongeado de ser a reencarnação de um ser tão talentoso, brilhante e problemático. Embora eu saiba que tudo não passa de alucinação do meu comparsa “Arcas”. Maiakoswski se suicidou com um tiro no peito, talvez por um amor não correspondido, talvez pela sua decepção com a Revolução Russa de 1917, a qual ele apoiou veementemente, talvez por sua visão de que o universo é “tão somente um lixo cinza”.
O próprio Arcas se diz a reencarnação da talentosa dançarina Isadora Duncan. Aquela que morreu tragicamente enforcarda pela própria echarpe, que se enrolou na roda de um antigo carro conversível que ela própria dirigia. E, para provar, ele saía dançando pelas ruas de madrugada, pelas praças e era um espetáculo. Talvez, ele ainda o faça. Há anos não o vejo. Espero que esteja bem com seus seres fantásticos e espero que ele não leia nadinha disso que escrevo; pode se zangar comigo e me tirar o título de “a reencarnação de Maiakowski”, o que não mudaria nada em minha vida, mas perderia um pouco o charme. E toda loucura tem seu charme. E pasmem, segundo ele, Adolph Hitler trabalhava como caixa numa antiga agência do então Banespa em Taubaté. Eu hein !!!
Em Pinda, um sujeito apelidado de “Macchu-Picchu” ficava dançando como num ritual tribal pra lá de exótico e alucinado, rolando e dando cambalhotas no chão, enquanto eu e outros músicos nos apresentávamos numa choperia “familiar”. Ninguém conseguia detê-lo. Girava e soltava uivos como que possuído por seres xamânicos ou de outros planetas, sei lá.
Bem, estes seres são fantásticos e há milhões deles pelo mundo e, quando afloram-se os mistérios da noite e da boemia, eles surgem como num passe de mágica, como que para desfigurar a caretice e a mesmice. Eu os curto. E muito. São extremamente criativos e humanos, demasiadamente humanos. Talvez, não ganhem muito ou pouco dinheiro, ou mesmo dinheiro algum. Mas, pensando bem, até mesmo Bill Gates perderá em questão de anos toda sua fortuna: para a morte.
O que fazer então ??? Ah sim, os músicos compositores de Taubaté estão no momento em transe criativo de altíssima voltagem. Fervilham. Pipocam. Fazem novas e lindas canções. São criativos e não deixam de ser um pouco estapafúrdios também né. Acham que é pouco??? É muito. Ou seja, todos estão certos, mas os seres criativos e estapafúrdios estão mais certos ainda. Ou não?!
Errata: Numa coluna anterior creditei a Scott Fitzgerald a autoria de “Paris é Uma Festa”. Na verdade, o autor é Ernest Hemingway. Perdão velho Ernie. Não sei como Fitz entrou nessa história. Mistérios !!!
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Teteco dos Anjos, “músico, proto-poeta e jornalista” e com a cabeça cheia de ideias mirabolantes, escreve semanalmente, ou quando der na telha, no Almanaque Urupês[/colored_box]
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