Sensação de pensamento
Texto de Renato Teixeira
(Publicado na edição 675 do jornal Contato)
Fui ao Rio para uma breve temporada de três dias no Teatro da Caixa, uma pequena arena onde a música soa generosa e todos podemos apreciá-la mais de perto. Vê-se a platéia. Numa noite meu amigo querido, o Zé Carlos Sebe, estava lá. Foi sozinho. Às vezes, no meio da música, acontece uns devaneios e a gente deixa que a sombra de outros pensamentos, sutilmente, sobrevoe a canção.
Isso pode ser perigoso se nos deixarmos levar. Não deve passar de uma “sensação de pensamento”. A minha “sensação de pensamento”, quando vi o Zé na platéia, foi sobre o calor das velhas amizades. Rever personagens desse memorial que é a vida, é como andar pelas ruas estreitas da cidade antiga e bela, com seus nichos urbanos por onde passamos. Meu amigo Zé é um homem ilustre e digno. Dedicou seu saber às boas causas e se fez um agregador compulsivo.
No mesmo dia, também sozinho, estava lá outro velho e querido amigo, o Eric Nepomuceno, escritor e tradutor da obra de Garcia Marques. Conheci o Eric em São José dos Campos quando tínhamos quinze anos de idade. O Dr. Nepomuceno, seu pai, foi um dos fundadores do ITA. Em São Paulo, nos reaproximamos até que um dia, por conta do destino, o Eric enturmou com todos os escritores latino-americanos através do Gabo. Traduziu Cortazar, Puig, entre outros. Foram amigos até o fim. No camarim, depois do show, aconteceu o encontro entre o Zé e o Eric, que não se conheciam pessoalmente.
Os dois se olharam com o brilho da intelectualidade estampa da nos olhos. E eu, que já estou chegando no tempo das fartas emoções, aquelas que marejam os olhos e mexem com as lembranças profundas, me senti orgulhoso de poder ter tido a honra de conhecer pessoas como eles no trajeto da minha vida. A história oral e o pensar mágico do nosso continente, frente a frente. Já senhores, como eu, constatei, naquele instante, que a chama da juventude não se apaga quando a inteligência prevalece.
O Zé continua brilhando como nunca, com aquele velho ímpeto de ir ao encontro do que lhe faz bem pra cabeça e o Eric, que já andou publicando suas crônicas aqui no Contato, atento como uma águia, para que a escrita prevaleça. Acabou de re-traduzir “Jogo de Amarelinha” do Cortazar e se espantou com as deficiências da primeira tradução. Ao completar a sua, surpreendeu-se com o fato de o livro já não ter mais a mesma força de antes, quando o mundo ainda não havia entrado nos tempos digitais. Confesso que fiquei até um pouco inseguro com a presença dos dois amigos na plateia. E quase passei do ponto quando pensamentos alheios à canção sombrearam minha apresentação. Quando fui homenagear o Zé cantando “O Turco do Mercado”, que não estava no repertório, me atrapalhei um pouco e troquei a ordem dos versos.
Mas ficou aquela sensação gostosa de me sentir agraciado pelo destino que colocou tanta gente legal no meu caminho. Nas próximas edições pretendo falar de outros seres taubateanos que, decididamente, fazem parte do meu saber musical e contribuíram efetivamente no resultado poético do meu trabalho.
Acompanhe o Almanaque Urupês também na nossa página do facebook e twitter