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As breganhas de relógios de Taubaté
Um pouco da história da palavra
O centro de interesse da breganha é o relógio. Amplia-se, envolvendo outros objetos que tem correlação com o relógio ou com o ato da troca. Assim, breganham-se correntes (na maioria, de prata), medalhas e outros penduricalhos, moedas de preta adrede furada para pender das correntes: canivetes – instrumentos necessários na abertura da caixa do relógio, para exame da máquina deles; isqueiros, os breganheiros, por via de regra, são fumantes, e nada melhor para um “disfarce” ou para excitar a loquacidade do que um cigarro. O cigarro, quase sempre de palha de milho, aparada no momento, alisada com as “costas” (o lado oposto ao de corte) do canivete ou da faquinha “p’ra tira o joça”, e, depois, presa aos beiços enquanto pica o fumo. Durante essa operação o breganhista ouve o interessado e concatena os próprios argumentos de contestação e rebate.
Saudação. Conferem os seus relógios, inutilmente, pois que estão certíssimos, já que nenhum breganhista deixa de acertar cavilosamente o seu, momentos antes do negócio.
Nessa altura, já se acercam os interessados e os afeiçoados, agrupando-se. Eis o segundo ato, onde a ação se desenvolve, mas continua indecisa; é o nó, que vai desatar-se com o desfecho do terceiro ato. O negócio é entabolado inicialmente com pedido de exagerada vantagem de parte. Ambos querem “vorta” (A “vorta” =complemento em dinheiro do suposto valor do objeto a ser barganhado).
Daí se desenrola um diálogo muito longo, cheio de peripécias e escaramuças mentais, onde se provam a imaginação, a habilidade, a elocução dos breganhistas.
E é exatamente neste segundo ato que mora o “fraco” do breganhista, o prazer de convencer o “adversário” e “derrubá-lo” nesse duelo incruento de engambelação pachorrenta, do qual ambos saem satisfeitos, na certeza de terem levado a melhor.
Elucidativo do exagero de que parte o negócio exagero que tem por objeto alimentar e dilatar o diálogo dos breganhistas, é o fato que segue:
Na manhã de um destes últimos domingos, palestrava-se num café da cidade acerca da breganha dos relógios, e, do grupo, alguém desejoso de presenciar o fato, convidou os demais para irem até o ponto de reunião dos breganhistas.
Ao chegar, já foi sacando da algibeira o seu custoso “patéque”, que reluziu ao sol das onze horas, preso de grossa cadeia de ouro. Logo a sua frente, um jeca arrancou do seu “estrada-de-ferro”, amarrado a uma corrente de latão, e se pôs a remirá-lo até que nosso amigo desfechou-lhe a pergunta:
– Quer breganhar?
E o caipira, olhando com desdém soberano para o “patéque”:
– Sé se me vortá trint’e cinco merréis…
Isto, porém, não traduz ignorância do caipira relativamente ao valor do objeto oferecido, não; é da técnica da breganha, a depreciação ritual, provocadora das contra-ofertas para o desenrolar das contestações e o escorrupichar do diálogo…
Para melhor flagrante, registremos o diálogo dos barganhistas A e B, dois quarentões:
A- Qué braganhá o relójo?
B- O relojo e a corrente ô (ou) só o relojo?
A- Ué… bamo vê…
B- Intào, ‘fereça; ‘fereça, Qui ‘ferecênû é agravo. (Trocam-se, para exame, os relógios).
A- (Encostando o relógio ao ouvido de B) Iscuite só; iscuite a búia (= ouça o tic-tac).
B- Quar… (interjeição= ora, qual…) Relojo, só abrindo (para se conhecer).
A- Puis, (pois) abra p’ra vê. Trabaia in oito pedra.
B- (Abrindo a caixa do relógio com canivete) A mó que (a modo que tá cunsertado cum palito de forfe (= fósforo). Eu nû sô imbruião (= não sou impostor). Esse relojo, ‘panhei ele do cumpadre Dito, Qui trôxe aturdia (= outro dia, faz pouco tempo) da Capela (Aparecida do Norte).
E por aí além, até o terceiro ato, onde se desata o nó e se dá o desfecho: a troca dos relógios, a consumação de breganha quase sempre com uma reposição em dinheiro- a “vorta”.
A “vorta pode ser, de início, estipulada em cem mil réis e vir a termo em magra nota de cinco.
Quem foi ludibriado, diz-se que levou a “manta”, mas não o confessa jamais. Ambos se julgam espertos e tendo auferido vantagem.
A breganha feita está feita.
Os “sapos” ainda ficam, comentam o negócio, apreciam a destreza mental dos braganhistas, sorriem do que saiu logrado e discutem a qualidade dos relógios breganhados, pois que também são entendidos.
E na mesmice deste “progresso”, a breganha de relógios de Taubaté reponta como teimosia e encantadora sobrevivência.
Sociedade de História e Folclore de Taubaté.
Boletim nº 1.
Março, 1948
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GENTIL EUGÊNIO DE CAMARGO LEITE -1900-1983
Mestre de latim, Português, história da civilização, francês e sociologia. Lecionou em Taubaté e Catanduva, a várias gerações, cuja inteligência e personalidade aprimorou. No magistério prestou serviços como diretor e inspetor de ensino.
Laureado jornalista, folclorista e pesquisador das nossas histórias e tradições, usos e costumes, foi um dos fundadores da “Sociedade de História e Folclore de Taubaté”, também ingressando em diversas instituições folclóricas do Brasil. Firmou também parceria com o músico taubateano Fêgo Camargo compondo várias obras ainda hoje conhecidas. Seu nome é citado em importantes dicionários de autores nacionais.
Admirado por Monteiro Lobato, em discurso proferido no Rotary Club de Taubaté, em 15/09/52, sobre o cinqüentenário dos Sertões, apresentou a idéia de instituir a “Semana Monteiro Lobato”.
A obra de Gentil de Camargo, esparsa em jornais e revistas foi reunida pela primeira vez no livro “Poesia e Prosa”.
(Fonte: Taubaté: de Núcleo irradiador de bandeirismo a centro industrial e universitário do Vale do Paraíba, de Maria Morgado de Abreu)
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