PROSA COM UM POETA LOUCO
Nunca pensei que conheceria pessoalmente algum dia uma lenda amazônica. Ainda bem que estava errado! Há mais ou menos um mês conheci o, no dizer do jornalista Narciso Lobo, “o mais torto dos poetas amazonenses”: Aldísio Filgueiras.
Tentar apresentar Aldísio para quem nunca leu um de seus poemas ou de seus artigos é um tanto difícil, mas vamos á luta. Estamos falando de um senhor de seus sessenta e cinco anos, bem vividos, que até hoje trabalha no jornalismo – nossas entrevistas acontecem sempre na sede do jornal Amazonas Em Tempo – e não perdeu o jeito informal e inquieto de se comunicar com as pessoas.
Aldísio, filho de uma família humilde, cursava a Faculdade de Direito do Amazonas quando foi dado um golpe em 1964 em um certo país da América Latina. Já era figura carimbada do movimento estudantil em Manaus e tinha muitos amigos na esquerda. Como a maioria dos envolvidos no meio artístico nacional, Aldísio foi tomado por um sentimento de revolta e desilusão: o povo estava com a faca e o queijo na mão para fazer a revolução e então, em uma noite, uma quartelada acaba com tudo isso? O povo realmente estava com a faca e o queijo na mão, ou era tudo ilusão?
A gota d’água foi ouvir da boca de um professor de Direito Constitucional que o golpe era legal. Aí largou o futuro de advogado e passou a viver de suas colaborações na imprensa diária. Com seus vinte e poucos anos e morando numa cidade então pequena e muito provinciana nesse contexto de repressão e paranoia, Aldísio era tomado por um sentimento de insatisfação. Sua vontade era sacudir a cidade, fazer algo novo, se livrar da carcaça do moralismo e do porrete da repressão.
Seu livro de estreia, Estado de Sítio (nome sugestivo, não?), ganhou o concurso da União Brasileira dos Escritores (seção do Amazonas), mas não saiu em circulação. O motivo era que estávamos em dezembro de 1968 com o AI-5 saindo do forno e um livro que diz poucas e boas á Manaus e ao regime militar. Quem iria publicar?
Era o tempo dos festivais e o Amazonas também tinha seus festivais. Havia o Festival Universitário de Música, onde Aldísio e uma moçada concorriam. No entanto, os jurados ainda viam com desconfiança aquelas letras que não eram românticas, ufanistas ou melodiosas. Classificavam-na de “lixo” na cara dura. E cansado disso, Aldísio resolveu fazer um festival em especial para esse tipo de música. Era o Festival do Lixo, quer dizer, o Primeiro ExposiSom de Manaus (afinal, Lixo era muito forte para ser nome de um evento, segundo a Polícia Civil).
A inspiração maior vinha do lendário Festival de Woodstock que tinha acontecido em julho de 1969 nos EUA. Um marco na contracultura mundial. A juventude que desejava um mundo com mais paz e amor, um mundo fora da lógica da Guerra Fria, tinha encontrado para si uma data definidora. E no Amazonas não foi diferente. Só que o Woodstock baré levou três meses para acontecer, por conta do aval da Polícia Civil, e não teria acontecido se não fosse a doação generosa de um dos pais dos inscritos no evento em cima da hora.
Foi um domingo de muita música e sol na Ponta Negra. A polícia, militar e civil, estava presente vigiando, mas o apocalipse imaginado pela nata da sociedade amazonense não aconteceu. Tirando um acidente de um exibicionista com sua voadeira (barco com motor de linha) o Festival do Lixo teria repetido a mesma marca de incidentes que Woodstock registrou: zero.
Driblar a censura era algo que Aldísio quase dominava. Habilidade que adquiriu durante o tempo que participou do Teatro Experimental do SESC, encenando as peças mais polêmicas que essa cidade tinha visto. O uso do palavrão, atores seminus, trilha sonora violenta e qualquer menção ao governo ou a seus projetos eram o alvo de maiores reclamações dos censores e dos atores e encenadores mais tradicionais, que não entendiam todo esse experimentalismo.
O TESC, no entanto, foi ser fechado justamente por um governo democrático. Em 1982, em pleno mandato do primeiro governador eleito após o regime militar, as portas do teatro foram fechadas com um imenso cadeado. Anos depois o projeto retornou e continua até hoje, com as bênçãos dos seus pioneiros como Aldísio e Márcio Souza.
Depois de passar pela música e pelo teatro, repousemos na poesia de Filgueiras. Influenciado pelo neoconcretismo, muitos consideram seus versos pós-modernos. Não é a toa que o escritor Márcio Souza o considere o “o poeta dos estilhaços da amazonidade”: sua escrita é fragmentada e guarda múltiplas interpretações. Seus versos evocam cenas, guardam críticas ácidas e lúdicas. Lembra muito o objeto de seu olhar: a cidade de Manaus. Uma cidade que após a Zona Franca se transforma muito rápido e nem sempre pra melhor. Aldísio, que começou a publicar seus livros exatamente no mesmo ano de implantação do distrito industrial, busca representar essa transformação em seus livros Malária e Outras Canções Malignas (1976), A República Muda (1989), Manaus, as Muitas Cidades (1993) e Nova Subúrbios (2004).
Manaus é quase onipresente não só na sua poesia, mas na sua prosa. Á todo momento ela surge em sua conversa. É um pensador que não se furta á refletir sobre sua cidade. O que é incrível hoje quando todos parecem se focar apenas no básico, no superficial. Nosso poeta vai mais fundo na questão. Enxerga no capitalismo, no governo, nos intelectuais e até em nós mesmos a culpa de todo esse caos. No entanto, todos estes fatores não são o problema imediato, mas a ausência de iniciativa em resolvê-lo.
Se sua geração ficou conhecido por querer mudar o mundo e quebrar a cara com isso, a atual está se tornando famosa por reclamar de tudo, mas não levantar nem uma palha para melhorar a situação. Claro, uma geração é muito diversa e existem exemplos contrários á esse comportamento. Há quem diga que essa apatia está chegando ao fim com a força dos movimentos sociais, mas Aldísio se mostra desconfiado. “O que chamam de sociedade civil organizada é um monte de assentamentos: o movimento gay, o movimento negro, o movimento ecológico, o movimento contra a corrupção, etc… É uma loja de departamentos!”
A fragmentação das lutas sociais e o conformismo: dois obstáculos poderosos para se sair do buraco em que Manaus (e o mundo) se atolaram, segundo ele. E adverte: não adianta achar que descobrir a causa do problema resolve tudo. É preciso ação e é nessas horas que cada um tem seu grão de culpa. Pode-se condenar um prefeito que desvia verbas e coloca afilhados no poder, mas ele não chegou lá sozinho. Alguém o elegeu. Em um momento tão oportuno quanto este de eleições é sempre bom lembrar que nesse jogo ninguém é inocente e nada se conserta sozinho.
Enfim, isso é apenas um pedaço de nossa conversa. A cabeça de Aldísio é como a primeira página de um jornal: ali estão breves resumos de todas as seções ( esporte, música, cotidiano, economia, etc.). Incrível como ele consegue conectar temas tão díspares de forma tão crível e bem humorada. Mais incrível ainda é como ele nos aguenta, sempre o importunando em seu intervalo no trabalho para esses longos papos sobre o ontem e o hoje. E gostaria de finalizar mandando um abraço e um muito obrigado ao nosso “poetinha”. Evoé, Aldísio!
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