Por Giovanna Louise Nunes
A presente porção de documentos engloba, por conseguinte, mais de um quarto de século de vida brasileira, precisamente a partir do ano glorioso em que, por fôrça dos sangrentos acontecimentos anteriores, foi enfim conseguida a nossa independência política.
[…] Quando, com a ajuda de Deus, chegarmos ao termo do nosso trabalho, terá a grande região do Vale do Paraíba a fonte de que, finalmente, poderão resultar as obras de exegene histórica, com uma rigorosa interpretação científica dos seus homens e acontecimentos. Saibam os pesquisadores do nosso passado corresponder a esse esfôrço inicial, e nos daremos por largamente recompensado (GUISARD FILHO, 1944, p. 3-4).
Essa citação foi retirada da página de introdução às transcrições feitas do Códice – Papéis Avulsos (1822-1854), elaboradas nos anos de 1944 e 1945, pelo médico Félix Guisard Filho, que nos abre uma série de questionamentos sobre a produção dos livros.
A análise consistiu em verificar apenas as Atas da Câmara de Taubaté (1823-1837 e 1880-1883) e o Códice de Papéis Avulsos (já citado anteriormente) para verificar a escrita dos textos, como cartas, correspondências com outras províncias e atas de sessões ordinárias e extraordinárias, a fim de localizar as intervenções feitas.
A dúvida surgiu quando em uma pesquisa no Arquivo Histórico de Taubaté percebi que a maioria dos jornais da Hemeroteca Antônio Mello Junior, que eram pertencentes ao Dr. Guisard Filho, continham escritas à caneta, predileção por determinados temas em jornais, e por fim, testamentos e inventários do século XVII, com alterações em datas, ou sugestão das mesmas nos documentos, que com análise paleográfica fica perceptível.
Após pontuar essas questões, como sempre o pesquisador em História se depara com a possibilidade de verificar a intervenção dos homens nos documentos históricos e quanto isso pode ser prejudicial à nossa verdadeira história.
Sem levantar verdades absolutas, percebo um fator curioso à nossa saga. Faço minhas as palavras do historiador Marc Bloch – “A História é a ciência dos homens no tempo” – na qual, não me desliguei durante esse enfrentamento: dos fatos com os documentos.
A partir de então, resolvi buscar analisar o papel exercido por Félix Guisard Filho “a favor da história do Vale”, o qual contribuiu com seus estudos e muito, mas, como tudo que escrevemos tem uma intencionalidade, é em busca dela que devemos ir.
Algumas perguntas que não me saíram da cabeça eram: o que levou o médico e amante da História a produzir uma gama de trabalhos (fundamentais para a compreensão da nossa cidade e região) sem se especializar em um período e por que ir ao encontro dos temas que são muito visados como “história oficial” e aquele cuja escrita pode encaminhar a outra interpretação?
Após os questionamentos algumas hipóteses foram surgindo: a primeira delas é que o Dr. Félix Guisard Filho pertencia ao IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) e do IHGSP (Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo), sendo o primeiro criado em 1838, no governo de Dom Pedro II, com o intuito de “forjar a nacionalidade” e “fundar” uma história do Brasil, pelas artes, literatura e produções históricas. Sobre a intenção a intenção do IHGB, podemos citar em As Barbas do Imperador – “Um Monarca nos Trópicos”: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Academia Imperial de Belas – Artes e colégio Pedro II, em que a antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz apresenta e analisa a criação do instituto.
[…] o IHGB pretendia fundar a história do Brasil tomando como modelo uma história de vultos e grandes personagens sempre exaltados tal qual heróis nacionais. Criar uma historiografia para esse país tão recente, ‘não deixar mais ao gênio especulador dos estrangeiros a tarefa de escrever nossa história […]’ eis nas palavras de Januário da Cunha Barbosa a meta dessa instituição, que pretendia estabelecer uma cronologia contínua e única, como parte da empresa que visava a própria ‘fundação da nacionalidade’ (SCHWARCZ, 1998, p. 127).
Com essa ideia apresentada pela historiadora, a segunda hipótese surgiu: até que ponto as interferências documentais realizadas pelo médico eram em função de sua participação e envolvimento com o instituto? O que para a análise parece muito claro que toda produção de uma pesquisa em um determinado tempo irá sofrer influências internas e externas a quem escreve. Conviver com essa ideia de que os documentos da Câmara Municipal possam ter sido alterados em benefício dos grandes feitos históricos, ao enaltecê-los é quase que uma verdade, se assim eu posso dizer. Esse fato fica mais complexo quando algumas destas atas e documentos originais ao serem transcritos desapareceram.
Interesses, projetos de uma História Oficial e o poder da escrita na História, contribui para a construção da identidade nacional e isso não passou despercebido de nossos acervos. Para a conclusão desta pesquisa falta muito material para a análise. É necessário fazer comparações com outros documentos do país, o que não deixa de permitir que outros trabalhos venham a sustentar a ideia ou combatê-la. Por isso, gosto muito da História, pois é uma ciência em construção e sem verdades absolutas.
Bibliografia
GUISARD FILHO, Atas da Câmara de Taubaté (1823-1837 e 1880-1883). Documentos para a História do Vale do Paraíba. Vol.V São Paulo: Editora Universal, 1945.
GUISARD FILHO, Félix. Papéis Avulsos (1822-1854). Documentos para a História do Vale do Paraíba. São Paulo: Editora Universal, 1944.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. In: Um Monarca nos Trópicos”: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Academia Imperial de Belas – Artes e colégio Pedro II. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. pp. 124-144.
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Giovanna Louise Nunes é professora de história
1 Comment
Félix Guisard merece todas as homenagens de Taubaté, e de seus filhos. Pois foi o pioneiro da Industrializaçõ em nossa cidade.
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