No Veloso – Por Renato Teixeira
Chamava-se “Veloso” o bar onde, um dia, Tom e Vinicius observaram a moça passando, concluíram que era ela a síntese da beleza Ipanemense e criaram uma das músicas mais executadas em todos os tempos, no planeta Terra. O Rio de Janeiro, nesse tempo, era uma cidade bem mais tranquila do que hoje em dia. Digamos que fosse uma espécie de Ubatuba elevada aos céus.
Quando comecei minha carreira, nos finalmente dos anos sessenta, ainda usufrui um pouquinho do velho charme que naquele momento iniciava os desvios de rota que a levaram a ser o que é hoje; o protagonismo carioca agora pertence essencialmente às UPPs, ao goleiro Bruno, etc. A própria cidade mudou de lado, indo se esconder às costas do redentor.
O velho e bom Rio de Jobim e Vinicius, Rubem Braga, Manuel Bandeira, Sérgio Porto, Nelson Rodrigues, Glauber e outros mais de mil etceteras, esse, cumpriu seu glorioso ciclo que se inicia com a construção de Brasília e passou para historia, mais até que o próprio Getúlio.
Esse novo velho Rio, que começou a descerrar as cortinas no início dos anos setenta, deixou trilhas sonoras, filmes, eventos e histórias, muitas histórias, para que a posteridade se lembrasse com admiração exclusiva de uma cidade, e de algumas de suas gerações, que continua sendo a mais bela do mundo, mas que, há muito, já deixou de ser “maravilhosa”. Acho que a cidade de hoje começa com a construção do Aterro do Flamengo. E o último grande momento da cidade maravilha, em minha opinião, ficou a cargo do Pasquim.
Depois, os homens foram morrendo, velhas construções foram sendo substituídas pelo concreto banal dos dragões das empreiteiras, responsáveis pela arquitetura medíocre dos prédios de apartamentos construídos na sofrível década de setenta.
Certa vez, numa manhã de sol, voltando da praia, eu e meu primo Nico resolvemos tomar um chopinho no Veloso que agora não se chamava mais Veloso e sim “Garota de Ipanema”. Substituir o nome criou uma espécie de inversão na linha do prestígio. Antes, era Tom e Vinicius indo lá numa boa, como eu e Nico, tomar um chopinho e olhar as menininhas porque o bar era charmoso e atraía coisas interessantes. Depois, o dono do bar preferiu que as pessoas fossem lá porque foi lá que os compositores viram pela primeira vez aquela que os inspirou a compor uma das canções mais executadas do universo em todas as eras. Garota de Ipanema. Não mais Veloso.
Estávamos lá eu e meu primo Nico quando entra nada mais nada menos que o Tom Jobim sozinho, com um jornal embaixo do braço. O bar estava quase vazio e devia ser umas duas da tarde. Além de nós, umas quatro garotas lindíssimas numa mesa que dava para a rua. Tom foi se sentar no lado oposto do salão e confortavelmente abriu o jornal enquanto os garçons o cercavam com mesuras e gentilezas. Todos vimos que era ele, inclusive as menininhas que começaram a fazer comentários. O maestro então, vez ou outra, abaixava o jornal e as olhava por cima; depois puxava o jornal pro lado e as observava novamente por trás dos oculozinhos retangulares. Elas riam e ele se divertia enquanto lia seu jornalzinho e bebericava o chopinho.
Eu e Nico nos entreolhávamos admirados com a sutileza poética do cidadão Brasileiro Jobim fazendo jogo de sedução. Cada uma daquelas jovens estava se sentindo a nova Garota do velho Veloso. Tom, entretanto, ainda tinha uma carta nas mangas para a cutilada final: baixou a cabeça e por uns instantes ficou com o jornal entre as pernas. Suspense.
Bar vazio, algumas meninas, dois paulistas a passeio e o autor da música mais executada no Cosmo desde as primeiras eras da civilização sonora.
Num gesto rápido, Tom Jobim recoloca o jornal aberto em sua frente na posição de leitura; só que agora ele houvera feito um buraco redondo no meio do jornal e olhava as menininhas através do enorme orifício. Todos riram sutilmente e depois confesso que não lembro mais como acabou a história. De qualquer maneira, esse episódio serve para mostrar como a cidade era bem mais divertida nos tempos em que lá viviam pessoas como Tom Jobim e sua turma.
Para concluir, comento que havia lá em Ipanema, naquela época, uma morena linda chamada Duda, que era modelo internacional e que, sem dúvida, era muito mais bonita que a Helô. Desconfio até que, naquele exato momento em que os dois geniais artistas viram passando pela calçada frente ao Veloso o mote para criar uma das canções mais tocadas em todos os contextos da astrologia, deveriam estar um pouco além da conta… digamos, duas ou três caipirinhas a mais…
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Publicado originalmente na edição 571 do Jornal Contato