Minha alma no caminho da salvação
Os testamentos coloniais taubateanos encontrados no Arquivo Felix Guisard Filho
Por Amanda Oliveira
Num Arquivo Histórico são armazenados documentos de várias espécies: inventários, testamentos, processos de natureza diversa, etc. Neles estão contidas informações que vão auxiliar nas pesquisas de quem se dirige até lá.
Os testamentos são documentos oficiais que registram a “disposição ou declaração solene da vontade do testador sobre aquilo que deseja que se faça, depois de sua morte, com seus bens e fortuna” (Belloto, 2002, p. 89). Enquanto fonte de análise histórica, sua importância se dá na análise das atitudes perante a morte da sociedade taubateana desde o século XVII. Cada testamento reflete a vida e a derradeira vontade do testador.
O primeiro testamento Taubaté é datado de 1651 e nele, além de conter dados oficiais com relação ao ato de transmitir a vontade do testador de deixar sua herança aos seus herdeiros, se manifesta seus pensamentos, suas decisões, sua fé religiosa, seu apego às coisas, as pessoas que amava e a Deus, missas e intercessões dos santos para assegurar a salvação de sua alma, suas convicções e arrependimentos.
Regra geral, o testamento é o ato pelo qual o indivíduo lega aos seus herdeiros obrigatórios, ascendentes ou descendentes, ou, na falta destes, a terceiros, os bens que possuía quando vivo. Há, porém, casos em que o testador falece sem deixar nenhuma fortuna. Trata-se, então, de um testamento espiritual, em que são consignadas as últimas vontades do testador em relação ao modo de seu sepultamento e as várias devoções de caráter religioso (missas, esmolas aos pobres, etc.), do cumprimento das quais são encarregados membros de sua família, parentes ou terceiros. (MATTOSO, 2004, p. 173).
As partes que geralmente compõe um testamento são: a invocação inicial, os santos invocados, as missas a serem rezadas, o modo do sepultamento, o lugar do sepultamento, os dados pessoais como: data do falecimento, registro do testamento, nome do testador, profissão, naturalidade, filiação, credo religioso, condição social, cor, estado civil, número de filhos, nome do testamenteiro, condição econômica, bens a serem deixados, entre outros. Com isso, por meios dos itens observados acima, percebemos que há várias possibilidade de análise e pesquisa em um testamento.
Vale ressaltar, o que era comum nos testamentos coloniais em geral, o pedido de proteção de diversos santos, para que fossem intercessores na hora da morte, além de missas em honra dos mesmos. Essa era uma função religiosa que vinha desde a Idade Média, e segundo Philippe Ariès (2003):
O objetivo do testamento era o de obrigar o homem a pensar na morte enquanto era tempo […], em que o testador exprimia, por formalidades mais espontâneas o que se pensava, sua fé e sua confiança na intercessão da “Corte Celeste”, e dispunha do que ainda lhe era mais precioso: seus corpo e sua alma. (ARIÈS, 2003, p.187)
Além disso, o pedido de missas feitos nos testamentos tinha como função abreviar o tempo passado no Purgatório, ou á elevação da gloria do Paraíso. Segundo José Reis, “por meio das encomendas de missas e de apelos a santos intercessores eles tratavam da chegada ao mundo dos mortos. Pensavam no julgamento da alma perante o Tribunal Divino, buscando abreviar ou até (os mais otimistas) evitar a passagem pelo Purgatório” (REIS, 1991, p.209). Podemos perceber com isso que os testadores tinham a oportunidade de demonstrar seus desejos e vontades antes da morte, evidenciando sua mentalidade e cultura, profundamente religiosas.
Era prática antiga e comum entre os abastados da sociedade colonial o ato de se enterrar nos templos. Quanto mais próxima do altar ficava a sepultura, mais próximo este indivíduo estava diante de Deus. É interessante encontrar nos testamentos a descrição minuciosa da localização da sepultura dentro de igrejas como o Convento de Santa Clara ou a Matriz da vila de Taubaté (hoje catedral de São Francisca das Chagas).
Por meio de testamentos nos é proporcionado a compreensão de aspectos das atitudes perante a morte da sociedade colonial taubateana desde o século XVII, e esses documentos são fontes riquíssimas de estudo das mentalidades, costumes, práticas e representações culturais. Esses indivíduos que escreviam ou pediam que escrevessem seus testamentos tinham medo da morte, anseios de deixar preparado a sua salvação, ou seja, era uma sociedade emocionalmente envolvida pela religiosidade por todos os sentidos, em todas as fases da vida.
Referências Bibliográficas:
ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução: Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
BELLOTO, Heloísa Liberalli. Como fazer análise diplomática e análise tipológica de documento de Arquivo. São Paulo: Arquivo do Estado e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002.
MATTOSO, Kátia M. De Queirós. Da Revolução dos Alfaiates à Riqueza dos Baianos no século XIX: Itinerário de uma Historiadora. Salvador, Corrupio, 2004.
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia as Letras, 1991.
_____________ Amanda Valéria de Oliveira Monteiro é formada em História pela Universidade de Taubaté. Mestranda em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Trabalha no Arquivo Histórico Municipal Felix Guisard Filho com documentos datados a partir do Século XVII.