MAS QUE RAIOS DE ALDEIA É ESSA?
Por Vinícius Alves do Amaral
Fale de sua aldeia e falará do mundo.
Tá certo, mas… que raios de aldeia é essa?
O mundo está cheio de dicotomias, contradições que parecem por vezes serem irreconciliáveis. Hoje convido vocês a pensar uma delas que é essencial para o historiador: a relação entre o particular e o geral. Para o historiador que se dedica a pesquisar a história do Vale do Paraíba ou do Amazonas essa é uma questão que se impõe quase constantemente: como equacionar a história local e a história geral em nossa pesquisa?
Em historiografia é preciso ter sempre a pulga atrás da orelha com os conceitos e as terminologias usadas. O que se entende por “história geral”? É realmente de uma história mundial de que estamos falando ou apenas a história de uma certa “civilização” – a europeia, por exemplo? Vejo como uma consequência da visão estruturalista, que elege etapas de desenvolvimento histórico. Ora, esta concepção de História é muito cara ao pensamento ocidental. Que o digam os iluministas, os positivistas e até os stalinistas!
No caso nacional, a História do Brasil que vinha sendo produzida até meados do século XX foi realmente capaz de contemplar todas as regiões que compõem o país? A construção da história nacional, assunto que já foi muito discutido em nossa historiografia, passa por uma série de espaços de pesquisa e discussão, muitos dos quais ligados ao poder. Ora, basta nos lembrarmos dos Institutos Históricos e Geográficos que proliferaram pelo país. Todos tomando o prestigiado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro como parâmetro.
Chegamos ao século XX e as interpretações sobre o Brasil de uma série de pensadores causam alvoroço por sua originalidade ou ousadia. Freyre, Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, dentre outros, ganham o título de “intérpretes do Brasil”, mas será que no Brasil patriarcal e sensual de Gilberto Freyre não existe mais da vivência que o antropólogo teve de Pernambuco que propriamente do Brasil?
Continuemos com Freyre: já na década de 1940, o escritor de Casa Grande e Senzala pronuncia uma palestra onde expõe seu conceito de “continente-ilha”. Para Freyre, o Brasil era um continente por suas dimensões territoriais e por alguns elementos estruturais (digamos assim que existiam certos traços que compunham a alma do povo brasileiro) e, simultaneamente, um arquipélago de várias ilhas culturais. Caberia analisar e integrar todas essas ilhas entre si.
O que existia até então era a hegemonia dos estudos sobre o “continente”. Hoje, podemos identificar o contrário. As “ilhas” se tornam predominante na produção historiográfica. O que isso significa? Descrença no estruturalismo? Reação á globalização? Motivo é o que não falta, escolha o seu. No momento, o que importa é entender como essa “história regional” vem sendo feita e produzida.
A propósito, “história regional” é um termo que o historiador paraibano
rejeita justamente por fazer parte de um discurso. Para ele, um historiador que se designe como regional está reproduzindo todo esse ideal da construção do Estado-nação brasileiro. “Estudo História e ponto final”, basicamente é o que nos diz na introdução do seu interessantíssimo A Invenção do Nordeste e Outras Artes.
Concordo e discordo dele. Sim, o ufanismo ou o bairrismo podem contaminar a História, mas não acho que isso seja o bastante para banir o termo. Considero sua utilização ainda válida principalmente para efeitos didáticos.
O pesquisador Agnaldo Souza Barbosa diz que precisa-se romper com o preconceito antes de tudo em relação ás problemáticas regionais. Não se trata de um tipo menor de História, mas de um campo diferente. Como dissemos antes, os conceitos são a base do fazer historiográfico, sendo assim o segundo passo ao pesquisador local é refletir sobre os alicerces de seu campo. O que entendemos como região? É um recorte geográfico, pura e simplesmente?
Este historiador de Franca nos propõe dois pontos de partida para se pensar esse “regional”: uma temporalidade diferente e uma espacialidade diferente. É inegável que o tempo não passa da mesma forma para todos nós. Existem diversas temporalidades compondo a vida das pessoas e a nível regional isso fica mais claro. O “tempo do mundo” não é o mesmo que o “tempo de Manaus”, por exemplo. As transformações materiais e mentais não chegam na mesma sintonia em todos os locais. Tomando emprestado o conceito de espacialidade da Geografia Humana, Agnaldo propõe que pensemos o “regional” também através de vivências construídas histórica e culturalmente sobre certo espaço. O recorte aqui, portanto, não deve obedecer á geopolítica oficial, mas a como os membros de uma comunidade entendem e demarcam o espaço em que vivem.
Já Aldieris Braz Caprini, historiador capixaba, reitera as palavras do colega e adiciona ainda alguns cuidados de ordem metodológica, como lidar com a carência de fontes e com a repercussão de seu estudo na comunidade. Aqui faço uma ressalva em relação aos comentários de Caprini: em certo momento este afirma que um dos méritos da história regional é o de servir como laboratório de teorias historiográficas. Aponta o exemplo da concepção de coronelismo desenvolvida por Victor Nunes Leal, onde o poder do coronel reside no latifúndio. No Espírito Santo, acontece justamente o contrário: o poder do “coronel vendeiro” nasce do comércio em pequenas propriedades.
Não creio que esta concepção de História Regional como laboratório teórico seja interessante por dois motivos: além de reforçar o discurso nacional (afinal, aqui o ponto de partida se torna o geral e não o local), ao pensarmos assim perdemos um pouco do compromisso com a comunidade, uma exigência do historiador enquanto ator social, em nome da “academia”. Acredito que Caprini esteja apenas realçando um ponto que lhe cativou em seu estudo e não o elegendo como uma diretriz a ser seguida. Só reforço aqui que tomar essa proposta como guia pode trazer esse perigo de se desvencilhar de suas preocupações sociais.
Por que se comprometer com sua região estudada é importante? Não se trata de bairrismo, caros colegas. O historiador é um elemento da sociedade, ele não está livre, leve e solto, tudo que acontece ao seu redor lhe diz respeito. Se sua região está sofrendo com a carência de alimentos, o caos no trânsito, as obras faraônicas ou a velha roubalheira é um dever dele se analisar, se posicionar e se mobilizar para tentar acabar com esses problemas. Afinal, ele também mora ali, também come, também pega buzão lotado e coisa e tal.
Claro que o historiador também tem responsabilidades acadêmicas. O que o difere de um militante, por exemplo, é que ele se reveste de procedimentos e conceitos para analisar os males de sua “aldeia”, de seu e de outros tempos. Mesmo que a objetividade seja um mito, o rigor científico deve ser preservado para nos ajudar a escapar de algumas armadilhas do afeto. Não se trata de racionalismo isso, mas de entender que nossa aldeia não é melhor ou pior que nenhuma outra.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes.Quinta edição. São Paulo: Cortez, 2011.
BARBOSA, Agnaldo de Souza. A propósito de um estatuto para a história local e regional: algumas reflexões. Acesso em: http//www.franca.unesp.br/PROPOSITO_REGIONAL.pdf. Disponível em: 22 de Maio de 2011.
CAPRINI, Aldieris Braz Amorim. Considerações sobre história regional. Acesso em: http://www.saberes.edu.br/arquivos/texto-aldieris.pdf. Disponível em: 22 de Maio de 2011.
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3 Comments
Neste ano que termina, graças a Deus, presenciei um sórdido debate acerca the “História Regional”, cujo um dos interlocutores disse que ela é “malvista entre nós”. Porém, se trocarmos o termo para História local a coisa parece que muda… Sinceramente, creio que o debate historiográfico é um porre e repleto de contradições, nunca chegam a lugar algum, e aquelas quase sempre se esvanecem quando a obra está “acabada”. Em suma discute-se muito, e, na verdade, nunca um trabalho vai estar bom para seus pares. Hipocrisia ou não, a academia é assim…
Yoseph Manfredini, eu entendo perfeitamente o que você diz. Recentemente senti na pele uma saraivada de críticas. A maioria muito justas, reconheço, me ajudaram muito para analisar por um novo ângulo minha pesquisa. Mas outras, no entanto, desconsideravam uma série de dificuldades que o trabalho the pesquisa nos impõem. Todo estudo tem suas limitações, não tem como fugir, mas a intenção aqui não é julgar, mas compreender, afinal o compromisso não é com o conhecimento histórico? Infelizmente, há e sempre haverá muita gente que assume posições sectárias quando entram em um debate historiográfico, quase como se fossem inquisidores. Mas o meio acadêmico tem dessas coisas, fazer o quê…
o que o durval tenta entender é como se constitui um discurso que passa a se designar como regional. e isso não é fazer “história regional”. por outro lado, concordo com o professo itamar freitas, de que toda história é história regional. é uma questão de disputas por representação, como dizia pierre bourdieu, inclusive quando se opta abertamente por fazer história “regional” ou “local”.
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