Caboclo de Taubaté

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Por Guilherme Tauil

 

Mário de Andrade será o homenageado da FLIP, a Festa Literária de Paraty, de 2015. Localizei esta crônica no Diário Nacional, publicada em 17 de agosto de 1930, um domingo, em que Taubaté aparece como pilar de um ditado não muito honroso mas bastante curioso. A frase “Libera nos Domine”, algo como “Livrai-nos, Senhor”, é um canto católico pela salvação da alma dos mortos.

Capa da primeira edição de Macunaíma, disponível no Arquivo Nacional.
Capa da primeira edição de Macunaíma, disponível no Arquivo Nacional.

Mário incluiu o adágio em sua obra-prima, Macunaíma, mas sem a censura que julgou ser conveniente ao jornal, ocultando o trecho “mulher que mija em pé”. O estudo sobre o ditado paulista é um exemplo do trabalho etnográfico que o autor fazia em suas leituras, colhendo dados e refletindo sobre suas origens e vinculações. Leia a crônica “Caboclo de Taubaté”:

Outro dia, pouco me amolando com pesquisar mais pacientemente o meu assunto, mostrei diversos elos da cadeia internacional de provérbios que veio afinal a dar no adágio paulista em que se pede que “do caboclo de Taubaté, de cavalo pangaré e de mulher que tem certos… costumes esquisitos, libera nos Dominé”.

Mostrei que o adágio fora nacionalizado com muita perfeição, não só por terem posto nele, inventivamente, o caboclo de Taubaté, como ainda pela substituição da mula europeia (Cabra que faz mé, Mula que faz him, mulher que sabe latim, Libera nos domine) pelo nosso cavalo pangaré, e da educada mulher europeia que sabe latim, pela nossa cabocla decidida que não tem meias medidas pra fazer certos atos fatais da vida humana.

Ainda há que notar na paulistização desse provérbio, uma associação de ideias muito curiosa. Citei de propósito entre-parêntese o provérbio portuga que mais se aproximava do nosso pra mostrar essa associação. Em português o primeiro verso da quadrinha proverbial é “Cabra que faz mé”. Em brasileiro o verso está modificado para “Caboclo de Taubaté”. A associação é evidente. A palavra “cabra” é que provocou a vingança contra um possível defeito dos caboclos de Taubaté. Cabra em brasileiro, primitivamente designou apenas o multado, mas depois alargou o sentido, perdendo até o valor pejorativo que lhe determinara a invenção. “Cabra” se vulgarizou pra designar um homem qualquer, verdadeiro sinônimo pra “sujeito”. É assim que está, por exemplo, na quadrinha conhecidíssima:

Sou um cabra perigoso,

Quando pego a periga,

Mato sem fazê sangue,

Ingulo sem mastiga.

“Cabra danado!” é frase-feita que se emprega pra brancos, mulatos, negros e mestiços de qualquer mestiçaria. A associação veio provavelmente disso. Num país que quase não tem gado miúdo, coisa censurável de que já nos castigava Von Weech, as cabras são mais raras do que os cabras. A palavra soou pois, no adágio português, como evocando o cabra, o sujeito. Pôde isso ser logo substituída por caboclo. E caboclo de Taubaté.

Capa de Folklore do Concelho de Vinhais, do Padre Firmino Martins, edição de 1928

Mas hoje posso produzir mais alguns elos do curiosíssimo adágio, sem que os tivesse procurado propriamente. Foram eles que se vieram oferecer a mim, sem que eu tenha mérito nenhum nisso. Assim foi que, lendo o Folklore do Concelho de Vinhais do padre Firmino Martins, deparei com esta variação muito extravagante do adágio: “De socos, burros, chapéus de palha e línguas de mulher, Deus nos defenda!”

Como se vê a sistematização de enumerações chega aí ao máximo do exagero, e o adágio toma já uma feição acentuadamente individualista, perdendo até os valores de regionalização que possa ter. Muito comovente me parece ainda a substituição da mulher que sabe A LÍNGUA LATINA, por LÍNGUA DE MULHER, que é uma associação de ideias trocadilhesca bem divertida. Quanto à tradução do “Libera nos domine”, por “Deus nos defenda”, provavelmente é moderna.

Tanto mais que há mais dum século, por 1817, Saint-Hilaire já colhia o adágio com o respectivo latinório, em Minas Gerais. Quando foi de Itabira a Vila do Príncipe, o naturalista passou por Itambé, vilarejo mesquinho, cuja existência já não tinha mais razão viva de ser, com o desaparecimento do ouro que lhe vinha na água do rio do mesmo nome. É então que conta (Voyage dans les Provinces de Rio de Janeiro e Minas Gerais, cap. XIII) que o lugar “estava numa decadência tal que não se poderia comparar com nenhuma outra, tudo caindo em ruína”. “Não é sem razão, comenta, que se repete por aqui, este provérbio já citado por outro viajante, A MISERIIS ITAMBÉM, LIBERA NOS, DOMINE”. Latinagem da gema, bem própria dum Estado em que, me contaram, até hoje tem gente que fala latim, na isolada Paracatu. Mas Saint-Hilaire aproveita ainda o momento pra dar uma variante do latim, colhida por ele nas cercanias do Caeté. Diz:

Itabira, Itambé

Samambaia e sapé,

Meirinhos de Caeté,

Libera nos Dominé!

Não tem dúvida de que estes “Meirinhos” seculares meio que estragam a associação de ideias que julguei ver entre “cabra” e “caboclo” mas sempre convém não esquecer que a mesma fonte podia dar variantes diversas. E de fato não conheço adágio mais glosado que esse.

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Guilherme Tauiu, que participou da mesa sobre jovens escritores

Estudioso da literatura brasileira, Guilherme Tauil é cronista do jornal Gazeta de Taubaté e tem seus texto publicados às sextas-feiras.[/colored_box]

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