Ao historiador Nicolau Sevcenko, meu mestre, com carinho

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Rachel Abdala fala sobre um dos maiores nomes da historiografia moderna brasileira, Nicolau Sevcenko, morto em 13 de agosto, e o tempo em que conviveu com o pesquisador

19 de agosto é o dia do historiador e para celebrar a data, eu dedico esse texto ao historiador Nicolau Sevcenko, meu mestre. Da biografia e das obras há muitas fontes e, claro as próprias obras, mas como ele mesmo dizia o que é bom transborda as margens e eu acredito que é nas margens, no cotidiano de suas aulas, de suas reflexões em voz alta e de suas atividades acadêmicas que residem suas paixões e suas melhores histórias. Com ele aprendi muito, não só nas aulas nas quais realmente experenciei a expressão “meu queixo caiu”, mas também de nossas conversas em suas orientações e nos corredores da FFLCH-USP em minha época de graduação.

Tantas histórias quantas facetas tinha esse adorável disléxico. Gostaria de lembrar, registrar e compartilhar aqui algumas delas.

Em, suas primeiras aulas fazia questão de se apresentar assim: disléxico, canhoto, descendente de imigrantes. E explanava as dificuldades que isso lhe trouxe ao longo da vida, bem como sua origem imigrante e sua infância no bairro do Belém, em São Paulo. Sua história era fascinante como as histórias que contava.

Centro de Apoio à Pesquisa em História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH – USP), no campus da Cidade Universitária em São Paulo.  Foto: Marcos Santos.
Centro de Apoio à Pesquisa em História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH – USP), no campus da Cidade Universitária em São Paulo. Foto: Marcos Santos.

Na primeira aula que assisti da disciplina de História Contemporânea que ele ministrou, quando o famoso professor entrou na sala na qual todos os ingressantes o esperavam ansiosos, ele entrou, foi direto para a lousa, começou a escrever e quando finalmente se virou para a atônita platéia começou a falar como se nós não estivéssemos lá. Após cerca de uma hora depois eu entendi porque ele impressionava tanto os que o ouviam. A aula foi sobre Revolução Francesa. Não sobre os fluxos e refluxos das alternâncias do poder político entre girondinos e jacobinos, pois isso os estudantes já deveriam ter aprendido no ensino médio, mas como o povo, esse ilustre desconsiderado percebeu a revolução e se manifestou nesse processo.

Com ele aprendi a gostar de “ler imagens”, o que mais tarde me inspirou, de certa forma a desenvolver o mestrado e o doutorado. De uma imagem que distribuía em xerox para a classe toda saia uma aula inteira. Há quem diga que suas aulas, pela quantidade de alunos e ouvintes, e pela sua performance, eram shows. Para mim eram aulas, porque eu realmente aprendi muito e eram shows que ele sabia como ninguém prender a atenção e apresentar de uma forma interessante as questões mais complexas. Ele sabia contar histórias com pitadas de introspecção coletiva.

Nicolau Sevcenko (Imagem: Companhia das Letras)
Nicolau Sevcenko (Imagem: Companhia das Letras)

Frequentemente seus ouvintes em suas aulas multiplicavam-se, pois, além dos estudantes regularmente matriculados, leitores de suas colunas em jornais e periódicos de grande circulação acudiam à FFLCH para assisti-lo.

A maior parte das pessoas que gosta de ler afirma que têm dificuldade ou mesmo não consegue dormir sem ler antes, qualquer coisa, até bula de remédio serve. No caso do professor Nicolau, ele dizia que não conseguia dormir sem ver livros, pois quando pequeno dormia na biblioteca do avô. Assim, quando viajava levava um banner com a fotografia de uma biblioteca. Bem, até hoje não sei se isso era verdade ou lenda, mas que ele dizia, dizia.

Uma vez fui à sala dele para conversar sobre o trabalho final da disciplina, como é prática na FFLCH, e ele ficou quase meia hora me olhando antes de proferir alguma palavra e quando finalmente o fez disse: interessante. Depois disso, ficou ainda uns minutos antes de ler em voz alta a frase estampada em minha blusa: public image. O assunto do trabalho bem como a minha solicitação de bibliografia para finalizá-lo ficaram esquecidos. Ficaram esquecidos também os outros alunos na fila fora da sala esperando para serem atendidos, porque além do tempo gasto até iniciar a fala ficou mais um tanto refletindo em voz alta comigo sobre o sentido dessa expressão aparentemente tão singela, mas tão complexa. Hoje, ficando pensando em qual imagem sua ele “publicava” para as pessoas.

Depois dessa vez fui muitas outras à sua sala para conversarmos sobre Mazzaroppi, cinema, arte, artistas, literatura, história da arte…… Com ele conheci a faceta filosófica de Michelangelo, o artista italiano Giorgio de Chirico, a história das Bienais de Arte de São Paulo, e tantas outras coisas. De nossas conversas tenho as lembranças e a dedicatória que ele me fez em seu livro “Orfeu extático na metrópole”. Aprendi na prática e na etimologia o que eram tertúlias. Aprendi com o mestre. Ele gostava de dizer que eu sabia a agenda dele melhor que ele mesmo. Quando alguém perguntava se ele tinha alguma palestra naquela semana ele dizia: pergunte para a Rachel. Sim, além das aulas eu assistia suas palestras e lia seus textos. Tinha uma ânsia de aprender com ele. E eu não fui a única. Muitos colegas também eram fascinados por sua figura e suas histórias.

La torre rossa Giorgio de Chirico
La torre rossa, Giorgio de Chirico

Na disciplina História Contemporânea ele pediu como trabalho final um estudo sobre algum objeto cultural do século XIX ou XX. Poderia ser, de acordo com sua explicação, uma obra literária, um patrimônio, um monumento, um quadro, um objeto, etc. Apresentou como exemplos a Torre Eiffel, a obra “Crime e Castigo”. A exigência era que o trabalho não poderia exceder 5 páginas. Num primeiro momento todos acharam fácil, no entanto, percebemos rapidamente que além da dificuldade da escolha, pela ampla gama de possibilidades, era mais fácil escrever mais que menos, ou seja, concentrar é muito mais difícil que estender com citações, imagens, análises…. Meus colegas que escolheram obras literárias bastante conhecidas, por exemplo, tiveram muita dificuldade em apresentar todas as linhas de análise já desenvolvidas. Fiquei um tempo pensando na escolha e comentei com meu pai, competente e criativo professor de Língua Portuguesa, que sugeriu a caneta esferográfica. Fique maturando a idéia e me deparei com um livro sobre invenções no qual contemplava-se essa como uma das invenções que havia revolucionado o modo de se escrever no século XX. Eu me dediquei muito ao trabalho. Puxei um fio interessante de pesquisa. As pessoas vinham conversar comigo sobre a pesquisa, davam contribuições, se interessavam. Quando apresentei o trabalho a ele, ele se surpreendeu muito. Foi o único trabalho que recebeu 10. Meu pequeno estudo ficou famoso. E ele me contou sobre um livro inglês sobre o clipe de papel e como esse pequeno objeto havia efetivamente revolucionado a organização dos escritórios. Quando sai da sala ele me pediu que continuasse a pesquisa e que considerasse incorporar uma análise sobre a caneta de ponta porosa.

Ele gostava de contar passagens de sua convivência com o professor Sérgio Buarque, seu mestre, e com o historiador Eric Hobsbawm, com quem teve a honra de dividir uma sala de trabalho na Inglaterra.

De todos esses “presentes” que ele me deu de como se fez presente em minha formação o maior deles foi responder aos colegas que riam de mim pelo meu deslumbramento com a História que: “o dia que ela perder isso não será mais uma boa historiadora”. Assim, sigo deslumbrando-me com a História e incentivando meus alunos a se deslumbrar como ele me incentivou. Ele me ensinou que isso era possível e, mais que isso, necessário e me apoiou para que eu tivesse certeza de que eu estava no caminho certo.

Históricas do Nicolau…..

Nicolau Sevcenko (centro), Roberto Ventura (1957-2002) e Lilia Schwarcz durante o seminário O Impacto da Mídia Eletroeletrônica no Repertório Visual, em 26 de novembro de 1993, no IEA ( Mauro Bellesa/IEA-USP)
Nicolau Sevcenko (centro), Roberto Ventura (1957-2002) e Lilia Schwarcz durante o seminário O Impacto da Mídia Eletroeletrônica no Repertório Visual, em 26 de novembro de 1993, no IEA ( Mauro Bellesa/IEA-USP)

Certa feita foi com surpresa que li uma declaração dele em um texto desses “de gaveta” de revistas semanais no qual, vários casais explicavam os motivos pelos quais não desejavam deixar descendentes. Assim, ao contrário do que ele manifestou nessa reportagem e, desconfio reafirmava frequentemente, ele deixou muitos descendentes: os historiadores formados por ele.

Espero que essa minha singela homenagem possa mostrar um pouco mais desse grande mestre que nos legou suas obras e suas histórias.

Se a literatura foi a missão de Euclides de Cunha e Lima Barreto, como ele asseverou, a sua foi nos revelar outras possibilidades de olhares para os mesmos objetos históricos e, acima de tudo, que História se faz com um amor torto de disléxico dedicado e apaixonado.

 

Dedicatória à Rachel
Dedicatória à Rachel (Uma lembrança da nossa agradável convivência e das tertúlias inesquecíveis na primavera de 98. Um abraço. Nicolau. 9 out.)

Ao Nicolau, com o meu carinho e eterno agradecimento.

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Rachel Duarte Abdala é professora de Teoria da História na Universidade de Taubaté

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