DEPOIMENTO INÉDITO: O ESCONDERIJO DE LOBATO

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Pesquisa do jornalista Camões Filho mostra um capítulo inédito da história de Monteiro Lobato

Mesmo tendo falecido há 64 anos, a história do escritor Monteiro Lobato continua surpreendendo. O jornalista e escritor Camões Filho, da cidade de Taubaté / SP, a mesma de Lobato, está divulgando um episódio inédito da vida do autor do Sítio do Picapau Amarelo.

Em depoimento exclusivo concedido ao jornalista Camões Filho, a escritora Marly Nascimento Brasiliense, de São Bernardo do Campo / SP, conta que Monteiro Lobato refugiou-se na casa de seus avós para não ser preso pelo regime ditatorial da época. “Devo tê-lo visto algumas vezes pessoalmente, mas era à época uma menina”, diz ela.

Quando aceitou o convite para ingressar na Academia Paulista de Letras, Monteiro Lobato apresentou um dossiê de sua campanha em prol do petróleo, “O Escândalo do Petróleo” (1936), no qual acusava o governo federal de “não perfurar e não deixar que se perfure”. O livro esgotou várias edições em menos de um mês. Aturdido, o governo de Getúlio Vargas proibiu e mandou recolher todas as edições.

Capa da obra “O escândalo do Petróleo” de Monteiro Lobato

Sempre ativo, patriota e visionário, o pai da Emília criaria a seguir a União Jornalística Brasileira, uma empresa pioneira na elaboração e distribuição de notícias para os jornais. Em fevereiro de 1939 morreu Guilherme, seu terceiro filho. Abalado, Monteiro Lobato enviou uma carta ao ministro de Agricultura, que precipitara a abertura de um inquérito sobre o petróleo. Recebeu convite de Getúlio Vargas para dirigir um ministério de Propaganda, mas ele recusou.

Numa outra carta ao presidente, fez severas críticas à política brasileira de minérios. O teor da carta foi tido como subversivo e desrespeitoso e isso fez com que fosse detido pelo Estado Novo, acusado de tentar desmoralizar o Conselho Nacional do Petróleo, ironicamente presidido à época pelo general Horta Barbosa, que foi o responsável por colocar Lobato atrás das grades do Presídio Tiradentes e que, abraçando as ideias de Lobato, se tornaria em 1947 um dos maiores líderes da nacionalista Campanha do Petróleo.

Lobato foi condenado a seis meses de prisão, mas permaneceu encarcerado de março a junho de 1941. Uma campanha promovida por intelectuais e amigos conseguiu fazer com que Getúlio Vargas concedesse o indulto que o libertaria, reduzindo a pena de seis para três meses de prisão. Apesar disso, Lobato continuou sendo perseguido e o governo fazia de tudo para abafar suas ideias. Foi então que passou a denunciar as torturas e maus tratos praticados pela polícia do Estado Novo.

CARTAS DE LOBATO AO PRESIDENTE

Lobato preso
Lobato jovem

A seguir, a íntegra de duas cartas de Monteiro Lobato ao presidente Getúlio Vargas, onde ele relata sua campanha pelo petróleo brasileiro:

São Paulo, 20 de janeiro de 1935

 

Dr. Getúlio Vargas

 

Por intermédio do meu amigo Ronald de Carvalho, procurei no dia 15 do corrente, fazer chegar ao seu conhecimento uma exposição confidencial sobre o caso do petróleo, estou na incerteza se esse escrito chegou a destino. Talvez se perdesse no desastre do dia 20. E como se trata de documento de muita importância pelas revelações que faz, seria de toda conveniência que eu fosse informado a respeito. Nele denuncio as manobras da Standard Oil para senhorear-se das nossas melhores terras potencialmente petrolíferas, confissão feita em carta pelo próprio diretor dos serviços geológicos da Standard Oil of Argentina, que é o tentáculo do polvo que manipula o brasil. E isso com a cooperação efetiva do sr. Victor Oppenheim e Mark Malamphy, elementos seus que essa companhia insinuou ou no Serviço Geológico e agora dirigem tudo lá, sob o olho palerma e inocentíssimo do dr. Fleuri da Rocha. É de tal valor a confissão, que se eu der a público com os respectivos comentários o público ficará seriamente abalado.

         Acabo agora de obter mai uma prova da duplicidade desse Oppenheim, cornaca do Fleuri. Em comunicação reservada que ele enviou para a Argentina ele diz justamente o contrário, quanto às possibilidades petrolíferas do Sul do Brasil, do que faz aqui o Fleuri pelos jornais, com o objetivo de embaraçar a marcha dos trabalhos da Companhia Petróleos.

         O assunto é extremamente sério e faz jus ao exame sereno do Presidente da República, pois que as nossas melhores jazidas de minérios já caíram em mãos estrangeiras e no passo em que as coisas vão o mesmo se dará com as terras potencialmente petrolíferas. E já hoje ninguém poderá negar isso visto que tenho uma carta em que o chefe dos serviços geológicos da Standard ingenuamente confessa tudo, e declara que a intenção dessa companhia é manter o Brasil em estado de “escravização petrolífera”.

         Aproveito o ensejo para lembrar que ainda não recebi os papéis, ou estudos preliminares do serviço que V. Excia. Tinha em vista organizar, por ocasião do encontro que tivemos em fins do ano passado, no Palácio Guanabara.

 

Respeitosamente,

 

J. B. Monteiro Lobato

 

 

***

 

São Paulo, 19 de agosto de 1935

 

Dr. Getúlio Vargas

 

Rio de Janeiro

 

Excelentíssimo Senhor:

 

Conforme previ na última audiência que me foi concedida a 15 do corrente, há alguém interessado em embaraçar a ação da Cia Petróleos do Brasil, dificultando a obtenção da autorização para que ela siga seu curso natural, fora das restrições do Decreto nº 20.799, que, em requerimento ao Ministério da Agricultura, foi pedida. E como V. Excia., me autorizou, neste caso, a recorrer diretamente a V. Excia., como guardião que é dos verdadeiros interesses nacionais, sou forçado a lançar mão desse recurso.

         Negam-nos a autorização pedida, dificultando, retardando, protelando o necessário decreto. Isso vem impossibilitar a atividade da Cia Petróleos do Brasil. Os homens contratados à custa de tanto sacrifício monetário para procederem em nosso território quatro meses de provas, nada poderão fazer já que a companhia que os contratou não pode fazer contratos de opção nos terrenos a serem examinados. E desse modo terão de regressar para a América do Norte sem que o Brasil se beneficie das vantagens incomensuráveis da série de provas previstas e para as quais a nossa empresa se formou.

         Isso constitui um crime imperdoável, além de denunciar de modo esmagador que há gente paga por estrangeiros para que o Brasil não tenha nunca o seu petróleo. Em vez de, pelas funções de seus cargos, esses homens tudo fazerem para que tenhamos petróleo, quanto antes, tudo fazem para que não o tenhamos nunca. O caso é, pois, desses que pede a imediata intervenção de homens que, como V. Excia., só têm em vista os altos interesses do País.

 


Lobato preso

Assim, de acordo com a promessa que V. Excia. Me fez, venho denunciar a manobra da sabotagem burocrática e pedir o remédio urgente.

 

Respeitosamente subscrevo-me

 

De V. Excia. Atento servidor

 

Monteiro Lobato.

A resposta do presidente foi mandar prender Lobato.

DEPOIMENTO INÉDITO: O ESCONDERIJO DE LOBATO

As lutas cívicas de Lobato, suas campanhas do petróleo e sua prisão são sobejamente conhecidas. Mas em um depoimento exclusivo ao jornalista Camões Filho, Marly Nascimento Brasiliense fala da fuga do escritor e do local que lhe serviu de esconderijo.

Martha, filha de Monteiro Lobato ao lado do jornalista Camões Filho

Disse a escritora para Camões Filho sobre o local onde Lobato ficou escondido da polícia política do Estado Novo:

Era uma casa térrea, de porta dupla, alta e marrom. Havia nelas duas janelinhas pequenas de vidro colorido, de onde se identificava os visitantes. Na entrada, um hall com saída para dois quartos e mais à frente uma bela sala de jantar. Tudo mobiliado com móveis da época. Seguindo para o fundo havia à esquerda um pequeno corredor com uma porta grande e branca à direita, onde ficava o toalete e em seu término, a cozinha. Lá fora a área de serviço e um pequeno quintal.

         Mas havia um quase segredo nessa simples casa: uma escada de madeira que chegava a dois cômodos subterrâneos que tinha a mesma extensão dos cômodos de cima. Todas as portas eram claras e muito altas e as venezianas eram verdes da cor das folhas de abacate. E lembro-me disso porque havia no terreno atrás da casa, um abacateiro.

Foi nesse lar que passei os primeiros três anos de minha vida, juntamente com meu pai, minha mãe e minha irmã gêmea.

         A rua era chamada, como até hoje o é: Rua São Francisco, e o número era 301, casa 1, já que era um conjunto de quatro casas erguidas a mando de meu avô, um senhor português que veio, como tantos outros imigrantes, tentar a sorte nesta terra abençoada. Seu nome: Domingos Nascimento.

Foi ele que trouxe para o Brasil a arte de fazer cofres, sim, cofres que naquela época eram adquiridos até pelo governo para repartições públicas e bancos. Sua especialidade era tão grande que conseguiu, sem saber o número do segredo de qualquer cofre, abri-lo e, assim, cooperar com a pobre cabeça que já não conseguia mais juntar nenhuma combinação que acabasse com a ansiedade tão perversa. E isso aconteceu várias vezes, até madrugada a fora. E lá ia meu avô.

         Bem, depois de três anos de vida, minha mãe separou-se de meu pai e saímos dessa casa para outra, propriamente onde morava meu avô com seus três filhos, já que outros dois haviam se casado e outro morrido.

         A casa ficou vaga e vazia por algum tempo. Penso que não muito. Em confabulação com minha avó ficou determinado que no subsolo – de dois aposentos – ficaria alojado um certo homem que precisava urgentemente de acolhida. E a teve.

Assim, há mais de setenta anos, na época das controvérsias a respeito do nosso petróleo, ficou morando na casa onde eu havia nascido o Sr. Monteiro Lobato. Mal eu sabia que ele viria a ter tanta importância na minha infância com suas obras literárias e seu Sítio do Picapau Amarelo. Depois de dez anos voltamos a residir lá: eu, minha mãe e minha irmã. Saímos de lá casadas – eu com 25 anos. Mais tarde, com a morte de minha avó, todo patrimônio foi vendido. Hoje há nesse terreno dois ou três prédios de apartamento. A modernidade tomando conta dos espaços, mas não da História.

Meu avô faleceu três meses antes do meu nascimento e a ida de Monteiro Lobato para essa residência foi obra exclusiva de minha avó Carmelita Guglielmo do Nascimento. Não raramente esta senhora mandava o serviçal levar quitutes para o morador e averiguar se tudo estava correndo bem.

Por ocasião do Natal de 1999, pude reencontrar muitos familiares e colher alguns dados verídicos quanto à permanência de Monteiro Lobato na casa pertencente aos meus avós. E fiquei sabendo que nasci antes de Monteiro Lobato ter se abrigado em tal residência e que ele já era casado com D. Purezinha e tinha duas filhas, Maria e Ruth. Portanto, devo ter me encontrado com ele, ainda menina, muitas vezes.

Agradeço a oportunidade de relatar, com muito orgulho, uma pequena parte da vida de Monteiro Lobato.

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