Gente de fibra
Na imagem: Trabalhadores transportam a juta (Foto: Pedro Martinelli, em Amazônia, o povo das águas)
Por Vinícius Amaral
Existia no bairro da Cachoeirinha, em Manaus, uma chácara chamada Paraíso. O seu dono, um tal Dr. Eugênio, a vendeu na segunda metade da década de 1930 para um grupo de empresários paulistas. Com certeza ele achou estranho o novo uso que eles dariam para seu antigo terreno: criar ali a primeira fábrica de prensagem de juta da América Latina.
Juta? Sim, esse é o nome dado para uma planta asiática cujas fibras são usadas principalmente para produzir sacos. Afinal, você acha que tudo que era produzido aqui era enviado para o exterior em caixotes? Como o Brasil exportava muito café, este era um negócio muito rentável entre os anos 20 e 30.
Ah, sabe esse grupo de empresários paulistas? Pois é, o nome de um deles era Mário Boers Audrá, empreendedor de origem polonesa e membro do Partido Republicano Paulista, segundo Umberto Passareli. Com certeza você já ouviu esse sobrenome em algum lugar, bem como estas palavras: “Fitejuta”. Fiação e Tecelagem de Juta da Amazônia S/A. Esse era o nome da fábrica que ele criou em 1937 em Taubaté.
Na realidade a fábrica que ficava no bairro do Areão só manufaturava o produto, assim como sua irmã na Cachoeirinha. A maior parte do processo de produção ocorria no interior da Amazônia, onde a juta foi introduzida pelos japoneses no começo da década de 1930. Antes já haviam sido feitas tentativas de adaptá-la em solo paulista, mas fracassaram. Só com a ajuda de agrônomos da Terra do Sol Nascente que a planta deitou raízes, literalmente, em solo tupiniquim.
O úmido e fértil solo da várzea amazônica, para ser mais específico. Desde então o procedimento do cultivo da juta tem sido o seguinte: primeiro se limpa o terreno escolhido para a plantação, depois se faz a semeadura e para que outras plantas não atrapalhem seu crescimento deve-se capinar o local constantemente. Quando as hastes já estão robustas elas são cortadas e reunidas em feixes de vinte a trinta talos e deixadas de molho na própria água do rio. O objetivo é que o lenho seja separado da fibra pelas bactérias do rio. Dias depois as tiras são recolhidas e depois secadas e batidas (para que se retire as impurezas do rio) para que finalmente sejam estocadas pelo juticultor.
O negociador, subindo e descendo o rio, é a ponte entre o rolo de fibras amazônico e as pilhas de sacos produzidos em São Paulo. Nas fábricas a matéria-prima é prensada e transformada em embalagem para o café ou qualquer que seja o produto em questão. Estranho um saco ter um trajeto tão distante e tortuoso, mas esse fato traz á baila a importância de se estudar a história do Brasil levando em conta as especificidades das regiões para entender como elas estão articuladas seja na economia ou na política, por exemplo.
Mas o que eu queria chamar a atenção no artigo de hoje é para uma lacuna. Na historiografia amazonense, o juticultor não tem um espaço razoável: ainda se fala muito no trabalhador urbano ou no seringueiro. Em outras palavras falta ainda uma história social do trabalhador amazônico mais diversificada, que contemple dentre outras categorias o juticultor.
O cultivo da juta continua sendo um saber familiar, pois as plantações ficam em posse de pequenas famílias de interioranos. Gente que não tem nenhum outro instrumento neste trabalho a não ser o terçado (o facão) e as mãos. Aliás, é um trabalho muito precário: o juticultor vive sob a ameaça de doenças, como o rói-rói (assim é chamado um tipo de infecção que dá entre os dedos, parecida com uma micose) e a malária, ou mesmo de animais (a maior parte do trabalho é feito com metade do corpo debaixo da água, estando o trabalhador á mercê de arraias, jacarés e sucuris). Além disso, ele depende muito do clima: chuvas ocasionais podem destruir plantações inteiras.
O poema Cheia de Elson Farias demonstra muito bem isso quando diz: “Morriam de mágoa os homens/na época das enchentes./ Duros como raízes cuidavam da juta/ justos/ servos da terra exubere./ A sezão os dizimava (…)” A enchente trazia muitas mágoas e uma delas era a plantação perdida e essa dependência deles para com o clima só reforça a ideia de que são servos ainda dessa natureza fantástica. Claro que devemos relativizar até que ponto o trabalhador amazônico é “engolido” pela natureza. Ainda mais hoje.
Nos anos 60, a juta chegou a representar 12% da arrecadação de tributos no Estado do Amazonas. Com a chegada das fibras sintéticas e o aumento das tarifas alfandegárias nos anos 80, a juta foi perdendo o mercado, mas não desapareceu. Eis que com o novo milênio o produto ganha também uma nova força, com a diferença de que agora o maior polo deixa de ser Parintins (onde existe a colônia de trabalhadores Vila Amazônia) para se tornar Manacapuru.
E nesse pequeno município amazonense existe uma fábrica de prensagem e uma cooperativa de trabalhadores da juta. Ou seja, a articulação que antes parecia ser impossível por conta da dispersão deles ou mesmo por conta do assistencialismo do patrão (aqui nos referindo ás colônias de trabalho e não ao juticultor autônomo) hoje já é possível. Claro que o vínculo com a natureza ainda é forte em muitos lugares. Não dá para escapar de um temporal, o jeito é se manter atento com as previsões meteorológicas e antecipar a colheita.
O que sei sobre essa forma de trabalho, aprendi com pessoas que conviveram com estes trabalhadores, seja por interesse de pesquisa ou por laços familiares. Boa parte desse artigo é baseado em relatos. Um estudo sério sobre esse tema, como falei, está para ser feito. Para quem se habilitar eu só tenho uma observação: talvez pesquisando o juticultor possamos rever a economia amazônica (sempre definida por “ciclos econômicos” e não como um sistema onde várias atividades coexistem) e também os velhos preconceitos que rondam o trabalhador amazônico (a pecha de preguiçoso principalmente).
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