Foi mal, Amazonas
Por Angelo Rubim
Nas resoluções de ano novo, costumamos prometer não cometer os erros do ano que passou. É uma promessa que a maior parte da humanidade cisma em descumprir.
Às vezes colocamos algumas falhas em escala de grandeza. As falhas que consideramos menores, deixamos escapar da revisão, as que consideramos maiores, colocamos nos primeiros lugares da fila. Mas raramente são revistas.
Uma falta que considero gravíssima que cometi no ano que passou foi não ter dedicado muita atenção ao “Poeta dos Ipês”. Apenas algumas poucas linhas no Almanaque Taubaté #1. Em 2013 comemoraram-se os 130 anos de nascimento de Clodomiro Amazonas, o homem que foi considerado o mais paulista de todos os pintores.
Amazonas nasceu em Taubaté em 14 de março de 1883, filho de Antônio Alves Monteiro e Cândida Machado Monteiro e teve dois irmãos, Parnaíba e Tapajós, nomes dados pelo pai, considerado um grande nacionalista, em homenagem a outros dois grandes rios brasileiros.
Pintou o primeiro quadro aos 8 anos de idade e começou a carreira de pintor aos 16, restaurando os afrescos e telas do Convento de Santa Clara. Casou-se aos 21 anos, em 2 de fevereiro de 1905, com Maria Augusta Penna Firme, e mudou-se para São Paulo, onde trabalhou como bancário, profissão que abandonaria em 1923 para dedicar-se somente à pintura. Foi também o autor do primeiro brasão de armas de Taubaté.
Em 1912 expunha pela primeira vez em São Paulo, no Salão Radium. Segundo o jornal O Norte, de 6 de agosto daquele ano, a imprensa paulista foi unânime em louvar os trabalhos expostos. Das 35 obras expostas, sete foram vendidas somente nos primeiros cinco dias de exposição.
A sua segunda exposição em terras paulistanas, em 1918, “ainda como funcionário público, o que o fazia ser considerado pintor nas horas vagas”, foi um sucesso ainda maior. Depois de abandonar o emprego, em 1923, passou a ser considerado o
“verdadeiro pintor brasileiro, que sente a sua terra”. Também o elogiavam porque não era dado às “extravagâncias do momento”. Aristeu Seixas percebeu que ele não era um “acariciador de tela”, isto é, não tinha a preocupação dos detalhes. O traço era largo, o que era sinal de pulso e firmeza no que estava reproduzindo, assim como a perspectiva aérea e terrestre harmoniosas e a cor de rara felicidade. Os céus eram muito sentidos. Não era um imitador da natureza, e sim um selecionador do que queria reproduzir, colocando seu temperamento, sua maneira de ver e sua interpretação particular em cada trecho […] Era, para muitos, o mais paulista dos pintores, por nunca ter saído de São Paulo (Tarasantchi, 2002),
aliás, a veia nacionalista, herdada do pai, ficou ainda mais evidente depois da recusa que recebeu sobre o pedido de bolsa de estudos na Europa. Fato que passou a ser valorizado pela imprensa. O Libertário, de 7 de dezembro de 1924 diz que “o insigne pintor patrício quando se sabe que ele se fez à custa dos seus próprios esforços e méritos […] sem o apoio oficial que, às vezes, pelo milagre da politicagem, sem o menor critério de seleção dá, escandalosamente, honras de pavão a muita gralha nula mas cavadora, facultando-lhe excursões europeias com escalas pelos bacanais da velha Paris á la garçone”. Amazonas dizia não ser como os bolsistas, que, quando voltavam, depois de anos de estudo no exterior, traziam uma paleta desbotada, da qual era muito difícil se libertarem.
Tornou-se um dos paisagistas mais respeitados do Brasil. E, com o destaque conquistado a partir das suas exposições nos anos 1920, passou a viajar o país para apresentar o seu trabalho e retratar as paisagens de outros estados.
O Libertário de 21 de junho de 1925 revelou a conversa que o pintor teve com o articulista “C” (provavelmente Cesídio Ambrogi), mostrando o entusiasmo por sua própria arte e à viagem que faria para realizar exposição em Porto Alegre. “No sul, aproveitando-me dos momentos de lazeres, trabalharei na feitura de alguns autênticos quadros regionais gaúchos, cuja natureza se contrasta vivamente com a nossa, trazendo-os depois para esta capital [de São Paulo] onde os exporei para que o publico tenha uma verdadeira visão do que é a vida nos pampas, com toda a poesia agreste das suas coxilhas, dentro de uma tarde de verão, no cenário sem fim, onde o mugir maguado dos bois casando-se ao cantochão dos vaqueiros é como uma dolorosa prece incensória à agonia silente do sol…”. Como se vê, era também um poeta. Não encontrei nenhum dos seus textos, mas a biografia escrita por Ruth Sprung Tarasantchi confirma.
Apesar de circular por diversas regiões do país e retratá-las em telas, o pintor se interessava mesmo era pela paisagem paulista e seus ipês (o que levou Monteiro Lobato a dar-lhe a alcunha de “Poeta dos Ipês), quaresmeiras e embaúvas.
No seu último ano de vida, expôs seus trabalhos em Taubaté, dando início ao último roteiro de exposições que faria, em janeiro de 1953. Morreu em São Paulo, em agosto.
Clodomiro Amazonas é uma daquelas personalidades que merecem muito estudo. Há pouco sobre a sua biografia, mas os jornais locais são abundantes em informações. Precisamos de um daqueles bons biógrafos para levantar todos os dados, entrevistas as pessoas e compilar todas essas informações em um livro, uma revista, ou em alguma plataforma digital. As poucas obras que sobraram em Taubaté são de uma beleza sem tamanho.
Em 2013 tive uma experiência muito interessante, acho que a que mais causou a sensação de estranheza, como se tivesse visto um fantasma. Foi uma experiência de humanização. Costumo dizer que me torno grande amigo de homens e mulheres mortos, pois vejo fotografias, leio seus textos, vejo notícias sobre eles e acabo entendendo um pouco sobre a suas personalidades. É uma relação, de certa forma, íntima. Coisa que todo pesquisador deve sentir. Os artistas, no entanto, costumo enxergar como seres mais distantes, como entidades superiores ou algo do tipo. Como vejo apenas o resultado do seu trabalho, a emoção da imagem/som/texto costuma ser momentânea, apenas. Algo que dá e passa. Em uma visita que fiz à Pinacoteca do Estado eu parei diante de uma vitrine com uma série de palhetas de vários artistas, muitos deles por mim desconhecidos. Observava aleatoriamente, quando me deparo com uma palheta usada e assinada por Clodomiro Amazonas. De uma hora para outra eu tive a certeza de que aquele artista que eu tanto admiro realmente existiu… não que eu realmente duvidasse da sua existência, longe disso, mas aquilo que eu estava olhando com tanta admiração foi, provavelmente, o instrumento usado para criar aqueles quadros que observo com o mesmo entusiasmo. De repente aquele artista se tornou humano na minha frente. Saiu daquele espaço místico, intocável, que nos faz pensar que artistas são seres de outro mundo. E isso foi fantástico!
Deixo um excelente texto reproduzido pelo jornal O Norte, em 26 de junho de 1923, de autoria de Menotti del Picchia (sim, ele mesmo!), por ocasião da exposição feita em São Paulo, sobre o nosso conterrâneo Clodomiro Amazônas:
“O pintor Amazonas vai encerrar sua exposição. Com ela alcançou o jovem paisagista patrício dois êxitos: um moral, outro financeiro.
O êxito financeiro talvez não fosse grande… Foi, todavia compensador. Para um pintor patrício – oh! Este infinito mal de ser profeta no próprio país” – ganhar para as molduras, já é um estonteante milagre. Chegam por ai russos, húngaros, búlgaros, hotentotes e – prestigio dos nomes estranhos: Barabinsky, Golanoff, Maluff! – vendem tudo! Até a própria palheta… Pouco importa que a arte seja boa; para n[os sempre tem uma grande qualidade; é estrangeira…
Penso até que nossos pintores e artistas, em geral, para alcançar o sucesso de venda, deveriam fazer como fazem certos industriais nossos: colar o celebre rótulo ‘Made in Germany!’
Apesar de Amazonas ter tido a coragem, e, mais que isso, o generoso e patrício orgulho de se ter proclamado ‘pintor brasileiro’, alconçou um belo êxito financeiro na sua exposição. Dobrado, pois, é o seu mérito. Mas Clodomiro é cabeçudo: cabeçudamente nacionalista… É por isso que, encontrando-o eu, por acaso, outro dia, na praça Antonio Prado, disse-me confiante e satisfeito:
– Vou afundar outra vez no mato…. Continuar… O frio de junho põe na paisagem nossa notas dignas de serem fixadas. Mãos à obra, caro amigo… É mister não parar…
– Mas não vais à Europa, agora?
– Qual Europa!? Aqui no contato sadio e prodigioso das nossas coisas eu me fiz artista. Meu mestre, meu grande mestre, é a natureza da minha terra…
Gostei disso. Impressionou-me. Amazonas quer ser genuinamente nacional. Não quer pintar falsos outonos, nem exóticas invernias. Quer aurir na seiva ascendente das nossas árvores, no sol loura das nossas clareiras, nos reflexos de luz dos nossas rias e cachoeiras, a inspiração viva das suas telas. A violência cromática das nossas paisagens será seu mais expressivo professor de colorido. Nessa liz tropical e cegante, debuxando frondas, cercas, casas, caminhos, seu eterno mestre do desenho. E a poesia infinita dos recantos amorosos, dos campos pacíficos, dos regatos guizalhantes, os inspiradores lyricos da poesia que espiritualiza suas telas…
O formoso e forte pintor de hoje – o self-made-man da pintura – ganha, com tal proposito, muito na minha admiração e na minha simpatia. É e será cada vez mais um artista genuinamente brasileiro.”
Continuo muito entusiasmado para saber mais sobre ele, mas o tempo vive me pregando peças. Pela falha de 2013, tenho que pedir desculpas ao Amazonas. Foi mal…
___________________
Angelo Rubim é professor de história e editor do Almanaque Urupês.
Acompanhe o Almanaque Urupês também na nossa página do facebook e twitter
1 Comment
[…] http://www.almanaqueurupes.com.br/testedomau/wordpress//textos/colunistas/foi-mal-amazonas/ […]
Comments are closed.