Feira de trocas, barganha

 Feira de trocas, barganha

Confesso que já me escapou da memória a maioria das informações que eu possuía sobre a barganha. Quando ainda morava em Taubaté, procurava nos livros dados sobre esse evento que em minha opinião é o que a cidade tem de mais autêntico a respeito de seu perfil. A ideia de um posto de trocas onde os objetos em desuso para uns se transformam em utilidade pra outros é uma comodidade humana que existe desde os primeiros tempos sociais.

Certa vez, no final dos anos sessenta, Gilberto Gil foi comigo pra Taubaté passar um fim de semana. Naquela ocasião, ele era casado com Nana Caymmi e enquanto ela se enterrava numa maratona de jogo de buraco com meus pais, eu e Gil saímos pela cidade para curtir as coisas que eu conhecia e que de certa forma eram características nossas.

Fomos à Imaculada visitar os figureiros, tentei em vão achar alguma comemoração tipo Fandangos e Congadas e acabamos na barganha, onde Gil colocou seu relógio na roda e depois de uma bicicleta inglesa enferrujada, uma radinho de pilha sem antena e algumas outras bugigangas, ele chegou novamente ao relógio que por sinal era presente de seu pai e ele não queria se desfazer daquilo em troca de um prego torto ou um disco 78 rpm lascado.

Barganha de relógios. Foto: Angelo Rubim

Depois fomos ao TCC e ele encantou a moçada num espetáculo inesquecível no salão nobre, tocando sem microfone, apenas violão e voz. Quem assistiu aquilo com certeza jamais se esquecerá. Ele ainda não era esse Gilberto Gil todo que hoje o mundo reverencia, mas naquela manhã de domingo o elegante salão onde os associados realizavam suas mais sofisticadas festas parecia um quiosque de praia. Todo mundo que estava na piscina subiu as escadas em trajes de banho e o bicho pegou pra valer. Gil incendiou o ambiente com sua energia; estava absolutamente encantado com a experiência da barganha. Dia desses nos encontramos numa solenidade e relembramos daquele fim de semana.

Botinas, óculos, ferramentas em geral, joias, livros, etc, etc, de tudo há lá nos fundões do mercado municipal cuja estrutura veio da Inglaterra e em torno do qual a terra de Cesidio desenhou sua urbanidade. Certa vez eu e Zé Carlos Sebe pensamos em produzir um documentário sobre o mercado e o Zé fez alguns estudos históricos interessantes sobre aquela região da cidade. Seria muito legal de nossa parte contar um pouco do significado daquele complexo cultural que foi durante muitos anos o pulmão econômico de toda a comunidade. Quem sabe o mestre Zé resolva abrir seus arquivos…

A barganha enfeitiçava minha cabeça. Achava aquilo uma coisa muito digna, muito honesta. O que não serve pra mim pode servir pra você. Essa é a lógica da fraternidade. Compus uma canção para a Barganha e aí vai a letra pra vocês curtirem e irem conhecendo um pouco mais dos aspectos fascinantes da terra de Emilio Amadei Beringhs.

Compradora verifica, atenta, a mercadoria. Foto: Angelo Rubim

FEIRA DE TROCAS

FEIRA DE TROCAS
COISAS VELHAS PELO CHÃO
ONDE O QUE JÁ FOI USADO
TEM ALGUMA SERVIDÃO
COISAS DA GUERRA
RELÍQUIAS DA MINHA TERRA
PEÇAS DE GRANDE VALO
DOS TEMPOS DO IMPERADOR

PORTA RETRATO
CHAVE VELHA, LIVRO ANTIGO
MEDALHÃO DE UM SANTO AMIGO
OU UM PINHO FEITO À MÃO
REVISTAS VISTAS
QUADROS DE UM VULGAR ARTISTA

ALIANÇAS NO VALOR
DE UM ADEUS, PAGA DO AMOR
TUDO SE TROCA
NESSA FEIRA DA CIDADE
TROCA-SE AMOR POR SAUDADE
SOLIDÃO POR MATRIMÔNIO
LAÇO DE FITA
VALE UMA MOÇA BONITA
UM AMIGO UMA PROSINHAPOR UM PECADO UM PERDÃO

MAS NÃO PROCUREM
QUER POR DOR OU POR VAIDADE
NOS ARTIGOS DOS FEIRANTES
ENCONTRAR FELICIDADE

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Renato Teixeira

Texto Publicado Originalmente no Jornal Contato

almanaqueurupes

1 Comment

  • BRAVO! RENATINHO! Muito lindo!

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