Família escrava em Taubaté
Por Fabiana Pazzine
Apesar de existir muitos historiadores, jornalistas, amantes de história entre tantos outros que escrevem textos sobre escravidão, posso dizer com toda a certeza que este tema ainda não foi esgotado. Isto porque muito do que se escreve é uma releitura do que já foi feito. Boa parte da documentação dos arquivos, fora das grandes capitais, não foi estudada e, em alguns casos a documentação não recebeu ainda o mínimo de organização para que o pesquisador possa investigá-la. Existe também a ordem de Rui Barbosa que mandou, em 1890, que se destruísse toda documentação referente a escravidão no Brasil, já que, segundo o político, todo esse material representava uma mácula ao nosso passado. Deixando de lado todas as polêmicas em torno desta questão, outro problema surge: o relacionamento entre senhores e escravos que de maneira geral é retratado simplesmente como uma simples relação entre possuidor e mercadoria o que na prática nem sempre se revelou assim.
O senhor, a partir do momento em que comprava sua mercadoria, tinha que fazê-la dar lucros, ou seja, o escravo tinha que produzir. Nos filmes e em novelas, vemos de maneira muito clara a ferramenta do senhor, que se utilizava do chicote para forçar o escravo a produzir. Mas será que o sistema escravocrata sempre se organizou de maneira tão objetiva assim?
O escravo, representado tantas vezes como o bom trabalhador, se rebelava sempre que possível: produzia menos, levando o seu trabalho na velocidade mais lenta possível; matava seu senhor ou seu feitor ou em casos mais extremos se suicidava. Para quem estranhou este aspecto digo, já de imediato, que não há nada de estranho, não. Lembrando da frase de Victor Schoelcher em Esclavage et Colonisation, que dizia que só teme aquele que tem o que perder, poderíamos pensar um pouco a respeito: cansados de tanto apanhar e sem nenhuma perspectiva muitos se matavam, pois, primeiramente se livravam do sofrimento e depois causavam prejuízo ao senhor desfalcando parte de sua fortuna.
Ainda quanto à rebeldia muitos acreditam que se o escravo não se rebelava ou era por falta de oportunidade ou de estímulo[1], sendo assim todos possuíam a capacidade de se insubordinar.
Diante da realidade de que nem sempre a violência era capaz de forçar o escravo a trabalhar, alguns senhores compartilhavam da prática das concessões, em outras palavras, o senhor dava algo ao seu escravo com o iminente risco de tomá-lo ao menor desvio de conduta.
Nesse contexto, apresentam-se as famílias escravas, pois, a partir do momento que caracterizamos o escravo como uma mercadoria, torna-se absurdo ou pelo menos incoerente pensarmos em possíveis casamentos. Mas, como o senhor desejava manter a paz e a produtividade em sua propriedade permitia o casamento, que em muitos casos, geravam lucros, considerando, nesse sentido, os filhos que esses casais poderiam gerar.
Por algum tempo, esse tipo de atitude por parte do senhor de escravos foi vista como simples bondade, mas, nas palavras de Joaquim Nabuco, podemos caracterizar da seguinte forma: a escravidão só pode ser administrada com brandura relativa quando os escravos obedecem cegamente e sujeitam-se a tudo; a menor reflexão destes, porém, desperta em toda a sua ferocidade o monstro adormecido. É que a escravidão só pode existir pelo terror absoluto infundido na alma do homem[2]. Deu para entender? O clima aparente de paz de fato não era real, sustentado apenas pela obediência dos escravos. Outro fato que deve ficar bem claro é que se o escravo obedecia não era por uma possível vocação para escravidão, mas sim, de novo nas palavras de Nabuco: […] se [o senhor]quiser privá-lo de formar família, pode fazê-lo; se, tendo ele mulher e filhos, quiser que eles não se vejam e não se falem, se quiser mandar que o filho açoite a mãe, apropriar-se da filha para fins imorais, pode fazê-lo.
Ao ler os Inventários e Testamentos, do Arquivo Histórico Municipal de Taubaté Dr. Félix Guisard Filho, fica clara a formação de núcleos familiares pelos escravos, concretizando na cidade a concessão de privilégios, já que partia do senhor a autorização para a realização dos casamentos.
Os Inventários e Testamentos vistos estão datados antes de 1869, data na qual foi promulgada uma lei que vetava a separação, por meio da venda, de casais e seus respectivos filhos até 15 anos, facilitando, portanto, esta prática.
Taubaté, portanto, não foge de um contexto nacional no qual senhores e escravos encontraram maneiras diversas de se relacionar que vão muito além do castigo e da obediência. E resta a nós, amantes da história, desvendar aquilo que ainda é novo e desconhecido a respeito do nosso passado. Muito já foi descoberto, apesar disso não significa que o trabalho árduo do historiador entre as letras, a interpretação e a poeira não está acabado e a contragosto daqueles que acham que a História continua sendo a ciência do passado, aqui fica mais uma prova que esse passado depende muito do presente não estando pronta e acabada.
[1] GOULART, José Alípio, Da Fuga ao Suicídio (Aspectos de Rebeldia do Escravo no Brasil), Rio de Janeiro: Conquista, 1972.
[2] Nabuco, Joaquim. O Abolicionismo, p.90.
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Fabiana Cabral Pazzine é professora de história. Pesquisadora de História Cultural e Social.
1 Comment
Muito interessante.
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