ESSA JUVENTUDE FARDADA… (II)

 ESSA JUVENTUDE FARDADA… (II)

Veja aqui a primeira parte desse artigo

Taubaté, que fora alçada a condição de cidade em 1842, deve parte do seu crescimento ao café, isso é inegável. Em pouco tempo, as casas coloniais cediam espaço aos casarões em estilo eclético como o Solar da Viscondessa.

Não era só no meio físico que a cidade mudava, mas também no espírito. Taubaté do final do Império até a Era Vargas era muito mais um espaço rururbano, nas palavras de José Carlos Bom Meihy, que uma cidade propriamente dita. A maioria da população vinha do campo e tinha uma relação muito profunda com ele. Mesmo assim aos poucos ia se impondo aos cidadãos um meio de vida urbano.

E esse novo modo de vida é muito visível nas diversões populares. Para além das festas religiosas, como a de Bom Jesus de Tremembé, existiam também os esportes. Como dissemos antes o esporte, na época, ganhou as massas por se associar a disciplina e o movimento que a modernidade prometia trazer. Mas não foram as massas a primeira a se render á ele.

Vejamos o futebol. Ele foi trazido pelos ingleses e foi adotado pela elite paulistana no começo. Demorou, vejamos, uns vinte anos para que ele se tornasse realmente popular em São Paulo. Em Taubaté, segundo Oswaldo Barbosa Guisard, quem chegou primeiro foi o ciclismo através da fundação do Club Sportivo Taubateano em 1904 e da criação de alguns campos esportivos pela cidade. O maior dos velódromos ficava na atual Rua Quatro de Março.

Com o tempo o Club foi se adaptando a nova mania vinda da capital paulistana: o futebol. Quem quisesse mais velocidade, poderia participar das corridas de automóveis, muitas praticadas perto da Praça da Matriz. Os mais tradicionais poderiam ver uma tourada aos domingos, o que na década de 1910 já era um tanto raro. Claro, quem estava por trás dessas atividades no início eram gente de muito recursos e status. Aos mais humildes restavam esportes mais “brutos”, como a luta e a corrida de cavalos.

Á essa juventude sedenta por ação e necessitada de mais civismo (na visão da elite), os comerciantes enxergam como melhor ocupação as aulas dos Tiros de Guerra. Assim em 15 de agosto de 1917 é comunicado no jornal O Norte a decisão da Associação Comercial de Taubaté de criar um TG local. A atitude, segundo o discurso oficial, mais uma vez reafirmaria a vocação cívica da cidade dos bandeirantes.

O prefeito Dr. Cesar de Oliveira Costa dá todo seu apoio, inclusive decreta o auxílio de dois contos de réis para a construção do stand de tiro. No início, o Tiro funcionaria na própria sede da Associação, mas depois, graças ao prefeito Major João Zanini de Assis seria deslocada para uma sede própria na Rua Afonso Moreira, segundo Guisard, perto das ruínas do Convento Antigo.

O primeiro diretor seria o sogro de Monteiro Lobato, o eminente doutor Enéas Natividade. Já o primeiro instrutor militar seria o truculento sargento Prado que logo foi substituído pelo “benquisto e tratável” sargento Godofredo de Paula. Sobre o sargento Prado, Oswaldo Barbosa Guisard nos lembra de um episódio onde ele ordenara que um rapaz, só por ter trocado os números da gola de seu uniforme, fizesse 40 voltas no pátio, sendo observado por fiscais e atiradores.

Localizamos um anúncio de fevereiro de 1944 no C.T.I. Jornal sobre o Tiro de Guerra 445, evidência da longa duração da entidade.

O que era necessário para entrar no Tiro? Inicialmente, 19800  mil réis só para comprar o material obrigatório: a calça, o dólmã, a farda e o boné (ou bonnet). Isso sem falar da mensalidade, que durante os primeiros anos oscilou muito (tendo em vista os anúncio publicados n’O Norte). O que aprendiam lá dentro? O carro-chefe era o tiro ao alvo, mas havia ainda toda uma doutrinação que passava desde aulas teóricas sobre a história da instituição militar até a prática de esportes como corrida, musculação e, por que não, jogos de futebol.

Guisard, que pertenceu a terceira turma do Tiro, conta de uma vez que o então instrutor Benedito de Tolosa os levou a pé de Taubaté á Jambeiro, onde, após passarem a noite no mercado, participaram de um jogo de futebol com o pessoal da cidade. Mas era nos campeonatos de tiro que os jovens procuravam demonstrar a sua disciplina e talento. Como campeões é interessante destacar os nomes de Joviano Barbosa, Juvenal Machado, Asterio Braga e Remulo Giacchini, por exemplo.

Os campeonatos não eram apenas eventos esportivos, mas também serviam a um propósito ideológico. A ideia era demonstrar o poder e a pujança de um Estado que prometia endireitar a República. São Paulo, para Nicolau Sevcenko, utilizou do esporte como propaganda de seu projeto político de hegemonia sobre os demais Estados. Assim, encontramos o diretor geral de instrução estadual exigindo enfaticamente que o TG local demonstre seus resultados nos campeonatos em ofício publicado n’O Norte.

Não consigo dizer até quando o Tiro funcionou, porque não consegui concluir minha pesquisa sobre ele. O que posso dizer é que ele ainda estava de pé quando a Revolução Constitucionalista de 1932 eclodiu, contribuindo com alguns alunos para as fileiras combatentes. Antes de finalizarmos, vamos pensar um pouco sobre alguns pontos.

Primeiro, a iniciativa partiu de um importante órgão: a Associação Comercial de Taubaté. Ora, os comerciantes eram uma fração da elite local, formada também por fazendeiros, profissionais liberais e sacerdotes. Mas, ao contrário dos demais, eles parecem demonstrar uma maior união (quiçá consciência de classe). Haja visto que eles já possuem como porta-voz um jornal próprio, Doze de Junho, desde 1909, e uma instituição representativa.

O comércio não é uma atividade tão nova na cidade, mas se afeiçoa mais aos valores modernos que os fazendeiros, por exemplo. No entanto, possuem uma preocupação comum: como controlar o viver urbano? Em outras palavras, como não deixar que as massas façam da ordem urbana um caos. Uma das respostas é despertar o espírito cívico nelas. Um civismo não só nacional, mas regional: afinal essa é a terra dos bandeirantes, é a terra dos barões do café que sustentam o país.

Antes de doutrinar as massas é preciso doutrinar eles próprios, ou seus filhos. O projeto político tem de ser passado adiante. E se o esporte é um meio de se chegar á juventude, então que se aposte nele. Vejamos o quão forte era essa elite diante da estrutura militar: o sargento Prado, que aplica métodos militares tradicionais (claro, ele não chega a obedecer toda a cartilha do Conde de Lippe), é afastado inicialmente. O que fica implícito é que este fato esteja ligado á sua conduta em relação aos rapazes. Ora, isso no Exército era impensável. O que está em jogo aqui é a pressão dos comerciantes.

O futebol não está dentro das metas dos Tiros de Guerra, mas entrou nele por conta da mania que tinha se tornado. Mais uma concessão das Forças Armadas á juventude abastada. Havia muito em jogo, afinal: o Exército, o governo municipal, o governo estadual e os grupos sociais mais poderosos locais estavam reunidos sob esse empreendimento de, internamente, disciplinar os jovens e de, externamente, promover seu projeto político hegemônico. Para todos os fins, o Tiro de Guerra 445 foi mais que um simples stand de tiros.

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