ESSA FOTO É FALSA?
Para começar esse texto, empresto uma fala de ninguém menos que Boris Kossoy:
A manipulação é inerente à construção da imagem fotográfica. A foto é sempre manipulada posto que se trata de uma representação segundo um filtro cultural são as interpretações culturais, estéticas/ideológicas e de outras naturezas que se acham codificadas nas imagens. (Vi no História Viva)
Em resumo: toda fotografia é manipulada!
O ângulo de visão, a posição, o enquadramento, a composição, dão diferentes tonalidades e nuances aumentando ou diminuindo a dramaticidade do quadro fotografado. Daí surgem as diferentes variações da linguagem fotográfica, o que diferencia a fotografia artística da fotografia documental e da publicitária, ou o que une as todas as coisas.
Uma das principais referências da manipulação fotográfica baseada no enquadramento e composição está no cinema documental iniciado por Leni Riefenstahl, em seu monumental “O Triunfo da Vontade”, que retrata o 6º Congresso do Partido Nazista, em 1934. Detalhe: filme atualmente proibido de ser exibido na Alemanha. (Dica: no youtube está completo)
Desde as primeiras fotografias se estudam as diferentes reações de compostos químicos com a película fotossensível. Ações photoshopescas já eram comuns desde o século XIX. As alterações de brilho e contraste eram feitas quanto maior ou menor tempo o papel fotossensível ou o filme ficavam imerso no líquido revelador. A tonalidade dependia do tipo de filme ou papel fotossensível utilizado. Se feito com filme cromo, havia maior sensibilidade nas luzes baixas, logo, demandava maior habilidade do fotógrafo, pois é um filme pouco tolerante com erros de exposição.
Os antigos fotógrafos, que faziam suas próprias revelações, eram também físicos e químicos extraordinários, pois precisavam entender a matemática do comportamento da luz e da sombra; a matemática da mecânica da câmera fotográfica, como os valores de abertura e distância focal das lentes, tempo de exposição e sensibilidade do filme; a composição do material dos filmes e papéis, para estudar qual composto químico reagiria melhor e daria melhores resultados. Coisa que muitos dos fotógrafos da era digital jamais conhecerão.
Existiam outros tipos de manipulação que aconteciam depois da revelação do negativo, que dependiam muito mais do talento em múltiplas artes do que dos processos químicos. Quem é que nunca viu uma foto antiga colorizada a mão? Uma intervenção comum. Um tipo de manipulação que ainda existe é aquela feita em fotografias de pessoas mortas. Existem aquelas pessoas que nunca tiraram uma fotografia na vida e a família decide, durante o velório do indivíduo, fazer aquele único registro do ente querido. Um artista é contratado para pintar os olhos abertos na foto do morto. Uma manipulação utilitária.
No Brasil, uma das manipulações mais famosas (e no meu julgamento a mais importante) da era analógica é a imagem dos 30 Valérios, montada em 1901, pelo fotógrafo Valério Vieira. A foto representa uma sala com trinta pessoas com o mesmo rosto, o do próprio fotógrafo. Essa imagem é reconhecida como a primeira fotomontagem do Brasil. Vieira fez outras importantes montagens fotográficas, entre elas um painel de 180°, com 16 metros de largura por 1,4 metros de altura de uma imagem panorâmica de São Paulo, encomendada pelo estado.
Alguns dos retratos dos grandes políticos da história: falsos.
Um belíssimo projeto do site americano Four and Six é o Photo Tampering throughout History (algo como Manipulações fotográficas ao longo da História), que se presta a identificar imagens famosas que foram manipuladas. É uma preciosidade. Recomendo o clique.
Mas porque cargas d’água estou falando sobre isso?
Por desconfiança. Não sou um grande avaliador de fotografias, mas tenho desconfiado da um grande número de imagens antigas de Taubaté e, como tento reproduzir algumas delas para a série “Máquina do Tempo“, aqui no Almanaque, tenho tido muita dificuldade para refazê-las.
A foto que mais parece montagem é também a foto mais famosa de Taubaté, feita por Antônio Serra, o fotógrafo que mais deixou registros de Taubaté de meados do século 20. Veja:
Deixo um esquema com as minhas suspeitas, que se baseiam em dois elementos: luz e recorte.
Na marca número 1 a origem da luz, vinda do ponto mais a leste, provavelmente entre 6h e 7h da manhã, o que corrobora com a direção das sombras, mais visíveis nos pilares da parede frontal da igreja, em frente ao Café Fiel/Leiteria Cristal e no corredor da Cel. Jordão. Nota-se também, as montanhas mais escuras, em contra-luz. Além disso, os reflexos na vidraça da igreja revelam bem de onde vem a luz.
O dia realmente estava nublado, mas o brilho da luz nas nuvens mais altas (2) não correspondem com a origem da luz (1). Há bastante difusão de luz, o que se nota principalmente no teto dos ônibus (ou jardineiras? Alguém me ajude…) com destino a Tremembé e o outro a S. José.
Outro aspecto das nuvens é que as altas e as baixas são muito diferentes. As de cima tem uma formação e padrão muito mais densa do que as de baixo, o que nos leva para o ponto três (3), o recorte da cena. Nota-se que nas as nuvens próximas às montanhas parecem ter sido coladas, e a mesma sensação nas bordas da igreja, que é ainda mais evidente. Deixo para download uma versão ampliada dessa imagem, para que possam observar mais detalhes do recorte que mostra uma visível manipulação… até que provem o contrário.
Essa manipulação retira a importância da imagem? De maneira nenhuma. Esse é, provavelmente, o registro fotográfico da Taubaté antiga mais famoso e mais impressionante. A composição é perfeita. O que o fotógrafo fez foi deixa-la ainda melhor.
Uma ação photoshopesca quando nem computador existia.
E antes que eu me esqueça, essa foto não é falsa, é uma amostra de verdadeira arte.
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Angelo Rubim é professor de história e editor do Almanaque Urupês.
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1 Comment
Meu filho,
Prosseguem as coincidências. Leni Riefenstahl é a maior documentarista de todos os tempos. Minha paixão e paixão de um taubateano ilustre, Fernando Zamith, meu colega e filho de um vereador do PTB de Taubaté do mesmo sobrenome. Foi Zamith que me deu um documentário fantástico sobre a Riefenstahl. Ela paga o preço de ter feito os docs geniais do III Reich. Morreu não faz muito, aos 105 anos. A partir dos 95 dedicou-se a docs submarinos!?!?!?!?!
E vem meu filhote citá-la exatamente quando eu tinha decidido levar o documentário “A Deusa” para vocês. É muita coincidência.
Agora, deixe-me dar um pitaco. Quando comecei em jornal, lembro-me bem, o retoque nas fotos era uma das coisas mais comuns. Metia-se um branco aqui, um cinza acolá, manipulava-se negativos e outras coisas mais em nome de um bom contraste. As impressões eram paupérrimas.
Imagino o que acontecia com o pessoal que me antecedeu.
De resto, vou me debruçar sobre essa foto e ver se descubro alguma coisa. Por enquanto, acho difícil ir além do que você observou.
Os coletivos são as chamadas jardineiras. Parece-me que são ainda aquelas com carrocerias de madeira. Há pouquíssimos exemplares delas entre colecionadores. Aliás, só vi uma até agora.
Um beijo, meu filho.
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