Elogio à preguiça

 Elogio à preguiça

Por Vinícius Amaral

 

Ai, que preguiça!

O relógio apita: hora do almoço. A história se repete há mais de 40 anos. O imponente Edifício Félix Guisard, mesmo após o fim da Companhia Taubaté Industrial, continua ditando o horário de trabalho da cidade. Reflexo da centralidade que a fábrica desse industrial pioneiro desfrutava em Taubaté. Hoje ele também é símbolo maior do sucesso do capitalismo.

O conceito de lucro não é uma invenção do capitalismo, que o diga os comerciantes das cidades italianas durante a Idade Média por exemplo. A noção de tempo útil, por outro lado, é filha dileta dele. Precisamos calcular detalhadamente os minutos que nos dedicaremos ao trabalho e ao lazer. Precisamos aproveitar racionalmente o tempo para lucrar e para consumir.
O historiador Edgar de Decca defende a hipótese de que o que deu origem á segunda Revolução Industrial e ao sistema de fábrica não foi somente o avanço da tecnologia, mas um discurso formulado pela burguesia que valorizava o trabalho e introduzia a famosa ideia de que tempo é dinheiro. Michelle Perrot demonstra como o relógio vai adquirindo posição central das fábricas, literalmente: deixa de figurar somente na sala do patrão para ocupar o armazém onde os operários trabalham e até a ser ostentado na porta da fábrica.

E de tanto ser repetido, hoje internalizamos esse discurso por completo. Mesmo no ambiente acadêmico. Veja como classificamos aqueles que não estão interessados em acumular capital: pessoas que vivem de subsistência. Ou seja, tem uma existência quase subterrânea. Como o Prof. José Vicente Aguiar nos atentou para o fato durante uma conversa, tal taxação já demonstra como ainda consideramos nossa sociedade a única digna no mundo. Todos aqueles que não possuem os nossos mesmos valores são exóticos demais ou sub-reptícios.

A velha lição que o século passado nos trouxe é que não existem sociedades superiores ou inferiores, mas sociedades diferentes. Sociedades diferentes possuem temporalidades diferentes, afinal o modo como encaramos o tempo é cultural também. O Ocidente é regido pela economia, enquanto as sociedades indígenas, por exemplo, pautam sua vida com base na natureza e no lazer.

O indígena dedicava seu tempo á roça de mandioca, á caça e á pesca, mas se o clima estivesse chuvoso ou se fosse época de piracema (momento em que os peixes se acasalam, pra quem não sabe) então ele podia perfeitamente mudar sua rotina de trabalho. Ele não tinha a preocupação em acumular riquezas, em usar o excedente, por isso até hoje o caipira ou o caboclo ainda possui o costume de viver apenas do essencial, aquilo que Antônio Cândido chama de “mínimos vitais”.

Morgado de Abreu, governante designado pela Coroa em sua fase pombalina para melhor gerenciar o sertão paulista, achava os moradores locais preguiçosos e degenerados justamente porque não estavam afeiçoados (nem faziam questão de estar) ao modo de trabalho que os portugueses desejavam. Muita gente aqui no Amazonas ainda se assusta quando vai para o interior e percebe a morosidade das comunidades ribeirinhas. Ora, esse outro olhar para com o tempo é uma herança cultural. Essa temporalidade ainda persiste em muitos ambientes rurais do nosso país.

E hoje, quando cresce o número de casos de estresse, paranoia e esgotamento físico, estas sociedades que antes julgamos inferiores podem nos ajudar oferecendo alternativas para o equilíbrio entre o trabalho e o lazer, sem falar de uma visão mais solidária para com a natureza. Precisamos parar de olhar para o caboclo estirado na rede de dormir com raiva (se bem que sentir uma invejinha é quase inevitável, não é?). Precisamos aprender a cultivar uma temporalidade que não nos escravize, onde um tempo para nós seja possível e não condenável.

 

Antes que o relógio da CTI apite mais uma vez deixo com vocês a opinião de um chefe tribal da Polinésia, Tuiávii, que visitou a Europa no século XIX e teve suas impressões de viagem publicadas no livro O Papalagui (que na sua língua natal quer dizer “o homem branco”). Em uma festa perguntaram quantos anos tinha e ele, rindo, respondeu que não sabia. Rapidamente foi repreendido: “Mas devias saber!”. Os argumentos á seu favor foram: “Ter tantos anos significa ter vivido um número preciso de luas. É perigoso esta maneira de indagar e contar o número das luas porque assim se chega a saber quantas luas dura a vida da maior parte dos homens. Todos prestam muita atenção nisso e, passando um número muito grande de luas, dizem: “Agora, não vou demorar a morrer”. E então essas pessoas perdem a alegria e morrem mesmo dentro de pouco tempo”.

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Vinicius Alves do Amaral é licenciado em História pela Uninorte.

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