DEVO NÃO NEGO, PAGO QUANDO?
Nos últimos textos tenho falado a respeito sobre fazer uso da História para conhecermos ou interpretarmos melhor o nosso presente e a nós mesmos. Hoje, costumamos dizer que tudo que vivenciamos é muito diferente do passado e que não sabemos a causa de tantas mudanças e, que em muitos aspectos, o passado era muito melhor, as pessoas sabiam aproveitar melhor a vida, valorizavam mais os seus familiares, não havia a necessidade de se endividar tanto e por coisas tão supérfluas como nos dias de hoje. Mas será?
Em um arquivo que mantém a guarda de documentos históricos existem os mais diversos tipos de registros que refletem a necessidade de se gerar papéis sobre os vários aspectos da vida das pessoas em uma determinada época.
Eram registradas as compras e posses de terra, assim como seus conflitos, reconhecimento de paternidade, inventários, testamentos, crimes e um dos tipos de documento mais numerosos: DÍVIDA!
As pessoas deviam porque desejavam investir nos negócios, porque necessitavam e não possuíam recursos ou, algumas vezes, simplesmente porque gostavam de gastar. Reconhecem alguma coincidência com a nossa atualidade?
Em 1844, em Taubaté, Antonio João da Mota que era o filho mais velho e emancipado de Anna Francisca Martins, sofria com as responsabilidades que vieram com a morte de seu pai. Como o trabalho não era novidade, mesmo antes de ter se tornado órfão de pai, Antonio já possuía alguns bens, mas, diante do comportamento consumista da mãe, não dava conta de administrar e saldar as contas do mês.
Imaginem agora o dilema de Antonio: respeitar a mãe e endividar-se ou desobedecê-la e deixar as contas em dia? Usando como argumentos o comportamento um tanto descontrolado da mãe que ora fazia suas compras, ora mandava alguém fazê-las por si e, o respeito filial, pois todo filho deve obedecer aos seus pais, Antonio estava usando os seus próprios bens para saldar as dívidas da mãe.
Em maio de 1844, levado por uma dívida de 2:736$406 (dois contos, setecentos e trinta e seis mil, quatrocentos e seis réis) quantia bastante avultada para a época, o suficiente para se comprar dois escravos homens, jovens e aptos para o trabalho e ainda sobrar para se comprar uma escrava não tão boa para o trabalho. A dívida de Anna, em cifras atuais, corresponderia a pouco mais de R$150mil, usando a conversão de valores proposta por Laurentino Gomes, no livro 1808.
Antonio precisava encontrar um modo para liquidar as suas dívidas e se certificar que a mãe não contrairia novos débitos.
Anna Francisca comprava de tudo: itens de vestuário, lápis, pena para escrever, tinta, papéis, velas, diversos tipos de brincos e pingentes de ouro, pentes para enfeitar o cabelo, ferramentas para o trabalho, mercúrio, salitre, carretéis de corda para viola, talheres, conjuntos de xícaras, pratos, pistolas, pólvora e até um selim de montaria para mulheres.
Ao analisar o que Anna Francisca consumia me deparei com um tal de senhor Timóteo (desconheço quem seja, não há como saber inclusive se este poderia ser o motivo das reclamações do filho) e constatei que ele sabia ler e escrever e que devia escrever muito, pois, são numerosas as compras de papel, lápis, pena, tinta e peso de papel que Anna havia feito para privilegiá-lo. Podemos concluir também que se plantava café, pois parte da dívida era saldada com o produto, e cana-de-açúcar, já que um boi para moer cana havia sido comprado. Comia-se bacalhau e temperava-se alguns alimentos com erva doce e pimentas do reino. Sabemos que o costume espanhol no qual as mulheres enfeitam os seus cabelos com pentes no meio da cabeça, também era corrente aqui em Taubaté e que alguns desses (não todos ainda bem!) eram feitos com o casco de tartaruga (!). E nos momentos de descontração os amigos e a família de Anna, divertiam-se com modas de viola.
Saber desses pequenos detalhes do cotidiano da família de Anna e Antonio nos dá uma leve sensação de experimentar e sentir o passado. Mas, não esquecendo do problema de Antonio, vamos nos ater a sua ação: o filho abriu um processo contra a mãe com a finalidade de justificar todos os gastos como sendo dela e não seus.
O processo que foi iniciado em maio, porém, teve a duração de apenas um mês e um dia, não porque ele foi finalizado nesta data, mas porque a partir de então, o processo não teve mais continuidade e, por isso, infelizmente não podemos saber o que aconteceu no final das contas.
Podemos lembrar que a História não é uma ciência que trata do “se”, ou seja, trabalha-se apenas aquilo que de fato ocorreu e não aquilo que poderia ter acontecido. Mas, diante dessa falta de desfecho, fica irresistível trabalhar com as possibilidades. Será que a família teria entrado em acordo? Será que a causa do problema seria o tal senhor Timóteo? Será que o respeito filial de Antonio não era assim tão grande como ele havia declarado e tinha aberto o processo porque estava cansado de sustentar a sua família?
As respostas para estas perguntas infelizmente não cabem a mim determiná-las, pois, por mais que eu tivesse procurado não encontrei mais nenhum rastro nem da mãe, nem do filho no Arquivo Histórico de Taubaté. Portanto, cabe apenas as especulações e, caso alguém tenha alguma pista do final dessa história, mande-nos notícia.
_______________________________
Fabiana Cabral Pazzine é professora de história. Pesquisadora de História Cultural e Social.