Texto de Renato Teixeira
(Publicado originalmente na edição 585 do Jornal Contato)
Todo artista em busca do sucesso tem que passar por um processo parecido. No caso dos músicos, começa com o repertório que define uma proposta, que determina o tipo de trabalho a ser feito e assim por diante. É uma fase de grande labuta onde a gente faz qualquer coisa que esteja ao nosso alcance, sempre visando atingir o público que é quem consagra e define o destino do artista.
Assim, de Chiquinha Gonzaga a Telló, todos passam pelo processo, até atingirem o sucesso. Muitos desistem da viagem e mudam de ramo. Mas os que estão decididos e acreditam verdadeiramente na própria vocação, esses enfrentam a tudo e a todos dispostos a vencer.
A minha geração de compositores surgiu nos finais dos anos 1960 e começo dos 1970, através das primeiras grandes redes de TV e da maior penetração das emissoras de rádio. Alguns programas eram fundamentais para quem quisesse brilhar nacionalmente. Se nos anos 60 os festivais comandaram o processo de lançamento de novos artistas, nos 70 foram as novelas que serviram de trampolim para muitos. Aberturas de seriados eram tiro e queda; eu mesmo passei por duas experiências marcantes com seriados quando compus a abertura do “Som Brasil” e de “Carga Pesada”. Era como acertar na mosca.
As emissoras de rádio estavam divididas em AM e FM; AM com uma programação mais popular, com DJ’s famosíssimos comandando, como sempre, o pior do repertório nacional e internacional, manipulados, como sempre, pelo hoje oficializados “jabás”, e as FM’s com uma programação mais elitizada, já que nesses tempos a música fazia parte do currículo escolar e era tratada como parte importante no perfil social do cidadão. Depois, um desses gênios do mau “descurriculizou” o ensino musical e assim, como o jegue que perdeu espaço para a moto, a música foi morar nas terras das banalidades, onde Tom Jobim nunca colocou os pés.
Mas, deixemos de lado as amarguras e voltemos ao que eu estava dizendo a respeito do processo de promoção musical que é por onde se chega ao sucesso.
Eu já havia emplacado duas ou três músicas e vivia aquela fase em que passamos a ter acesso aos programas mais disputados. Gonzaguinha e Raul Seixas estavam na mesma situação que eu e a gente vivia se encontrando pelos corredores das emissoras. Gonzaguinha andava sumido, pois, como é do conhecimento de todos, ele contraiu tuberculose, uma coisa que não acontecia com os compositores brasileiros há muito tempo, já que agora não éramos mais tão discriminados, como antes.
Gonzaguinha havia superado a doença e aos poucos ia voltando ao trabalho. Naquele sábado, estávamos escalados para o “Almoço com As Estrelas”, com Ayrton e Lolita Rodrigues. Eu, Gonzaguinha e… Raul Seixas. Os convidados do programa almoçavam sentados em torno de mesas servidas por garçons à caráter e com aquele menu meia boca.
A prioridade nas mesas era para os prefeitos e autoridades, que sempre pagavam de alguma maneira a exposição, e para aqueles que estavam precisando de um empurrãozinho na imagem. Lembro-me de uma coadjuvante de novela passando, sorrateiramente, um troquinho para o cinegrafista lhe dar uma atenção especial.
Nós, artistas, raramente ficávamos nas mesas; quando sobrava espaço, davam preferência para os mais desinibidos que alegravam o ambiente fazendo gracinhas e dando pitacos na condução dos apresentadores.
Eu, Raul e Gonzaguinha fazíamos nossa parte com toda a garra do mundo, mas sempre tivemos consciência de que aquele tipo de programa não era o nosso barco e se estávamos ali era só pra cumprir o processo.
Gonzaguinha estava saudável e bem humorado. Estávamos conversando num canto da coxia quando o garçom nos trouxe um copo de plástico com Fanta dentro. Então surgiu o Raul sem camisa, com uma calça de couro preto super justa, uma capa de chuva, dessas de gabardine e óculos sem lentes. Chegou meio esbaforido, querendo saber em que pé estavam as coisas. Raul, como todos sabemos, sempre foi um sujeito agitado e cheio de energia. Delicadamente, Gonzaguinha que era tímido e discreto ofereceu o copo de plástico com Fanta dentro pro Raul se acalmar. Então, o Maluco Beleza não deixou barato:
– Pô, cara! Sacanagem… Tu tá querendo me passar tuberculose? Bem agora que a minha música estourou? Esse negócio que você tem é aí contagioso, te contaram, não?
Gonzaguinha sorriu e explicou que estava tudo certo e se o Raul não quisesse do seu copo o problema era dele.
Logicamente, Raul estava já voando baixo naquela tarde de sábado, quando fez aquilo com o filho do Rei do Baião. Os dois já desembarcaram. Gonzaguinha na solidão da estrada, numa madrugada fria. Raul, meio que se fragmentou, pois volta e meia cruzo com um cover dele difundindo as loucuras existencialistas do mestre que durante um “Almoço com as Estrelas”, fez um comentário que caiu como uma mosca dentro do copo de Fanta do grande Gonzaguinha.
Renato Teixeira
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