Ana e Maria, Maria e Ana

 Ana e Maria, Maria e Ana
Texto de Dafne Araceli Román 

Olá, eu sou a Ana, hoje vou lhes contar sobre um fato muito curioso que aconteceu numa quarta-feira de tardezinha quando cheguei em casa. Eu havia saído para comprar legumes, estava frio, frio não, friozinho, por volta dos 19 graus e eu decidi que faria sopa de legumes, eu adoro sopa de legumes, mas enfim, não é sobre a sopa de legumes que vou lhes contar é sobre o que aconteceu quando cheguei em casa.

Estacionei o carro, chamei o elevador e vi que ele estava no décimo segundo andar, ia demorar em chegar e pensei, são só três lances de escada, encarei-a com coragem e sacolas, cheguei ao meu andar e percebi que meu apartamento cheira incenso, eu adoro incensos, chás, canecas e canela, o aroma do chá, com incensos e canela, não, não, fiquem tranquilos, eu não tomo chá com incensos, apenas os acendo para aromatizar a casa, mas enfim, o cheio do incenso se espalhava pelo corredor e eu já conseguia identificar de olhos fechados qual era o meu lar, todo mundo no corredor sabia que lá morava a Ana, mas quase ninguém sabia que junto comigo também morava a Maria, e é sobre ela que vou lhes contar.

Ao entrar em casa dei logo de cara com ela, foi um choque vê-la como a vi; abatida, cansada, cabelo mal arrumado, calça de moletom, mas a Maria não faz ginástica, deve fazer uns vinte anos que não a vejo colocar uma calça de moletom, Eu, ah! Eu adoro atividade física, me sinto tão viva, me permito até subir três lances de escadas com sacolas carregadas, a Maria? Ela nunca ia fazer isso, também, as sacolas dela sempre são mais pesadas que as minhas, coitada…

Maria estava com olheiras, nossa! há quanto tempo não a via com olheiras, mais ou menos uns 10 anos.

Olhei para ela, nem sentei, apenas perguntei: Maria o que há com você? Porque você está assim? Desacreditada da vida, amuada, abatida, cadê seu brilho? Cadê sua luz?

A Maria me olhou fixo e logo, ficou alguns minutos instáveis, meio como que esquivando, meio como que não querendo ser olhada, olhei-a bem no fundo dos olhos e indaguei, vamos, me diga, o que você precisa? O que te faz falta? O que te sobra? Fala Maria, bota pra fora!

Não demorou muito para ela se sentir ainda mais desestabilizada com tais perguntas e começar a responder de forma clara e eloquente às questões feitas por mim.

Ana, é difícil lhe dizer, me falava ela. Tudo o que me falta, me sobra e preciso, talvez você nem entenda, você tem só vinte e poucos anos, o que você sabe da vida? Mas bom, vamos lá, você quer saber, você vai saber, espero que entenda, disse ela, em bom tom.

Fiquei estacionada olhando para ela, lembrei-me dela jovem e eu ainda criança, lembrei-me do vaidosa que era ela, sempre a mais linda, elegante, inteligente, engraçada, amiga, a maioria da sua turma queria ser como ela, ela era admirada e adorada por todos, mas ela havia se esquecido disso, vejamos só, está aqui na sala da minha casa, sem rumo, triste e abatida, mas meus leitores, não pensem que isto é fofoca ou falar mal dela, é simplesmente um comentário, eu ainda tenho muito carinho e respeito por ela, sempre tive.

Maria, neste momento, cabisbaixa, começou a balbuciar o que poderia ser o começo de tudo, o começo de todas essas marcas de expressão, essa angustia, esse desespero, mas esperem, esqueci-me de lhes contar, Maria é dona de casa, casada, mãe de três filhos, dois gatos, um cachorro e uma tartaruga, Maria também tem um marido, se é que o podemos chamar de marido, mas, deixa pra lá, falar do marido pode ocupar nosso tempo e nosso tempo agora é decifrar o que é que acontece ou aconteceu com ela, para ficar assim, apagada, cinzenta, era preciso usar cores cintilantes para deixa-la ao menos um pouco mais brilhante e luminosa.

Maria só dizia, são contas, contas, contas, louça, louça, louça, nove cuecas por dia, nove cuecas, vê se pôde nove cucas. Maria falava; você vai fazer sopa de legumes? Que bom!  Eu vou fazer nuggets com batata frita, sopa?! Eu adoro sopa, mas, ninguém vai comer, então, vamos do trivial, arroz, feijão, batata frita e nuggets. Ana, por favor, não comece, não vou colocar salada, ela vai estragar, só eu vou comer.

Notei neste minuto que ela não estava nem um pouco confortável, ela não fazia mais nada do que ela queria, ela só fazia o que a prole masculina, precisava, gostava e queria.

Maria sorriu e subitamente pediu para colocar um disco, revirei meu baú e escolhi um da época dela, com certeza ela iria gostar, coloquei um Creedence, lembrava dela ouvindo quando jovem, eu aprendi a gostar com ela, voltei para sua frente e lhe perguntei; este está bom? Ela respondeu com um gesto simples e sincero, uma balançada de cabeça e um leve sorriso, neste momento qualquer calça de moletom se ajeita no corpo e dá um ar mais jovial, o como ela havia envelhecido nos últimos cinco anos, me apavorava.

Maria acendeu um cigarro, ela havia parado de fumar havia uns 10 anos, quando engravidou do seu primeiro filho, o Nicolas, mas também havia voltado a fumar há uns dois anos, não sei o porquê, já que ela odeia cigarros e bebidas, eu também não posso falar muito, também não gosto, mas confesso que já fumei e já bebi por algum tempo.

Ela estacionou, me olhou e perguntou e você Ana, do que você sente falta? O que você quer? Porque você não coloca um disco de reggae, você gosta tanto, Maria também gostava, na sua juventude ela era meio hippie. Procurei novamente no baú e achei um de Petter Tosh, já ouviu este, Maria? Sim, sim, mas faz tanto tempo, disse ela. Senti um ar de saudade, de nostalgia. Não lembrava que você guardava essas relíquias, disse-me.

Desestabilizada, ela já havia falado tudo o que poderia falar e agora ela queria saber de mim, do que eu queria com ela.

Olhei-a e lhe disse, o que eu quero é que você volte a ser aquela Maria que você era, decidida, empreendedora, vaidosa, confiante, alegre, batalhadora, o que eu quero é que você cubra essas olheiras que possui como o fazia quando você tinha vinte e poucos anos, o que eu quero é que você faça sopa de legumes e seja feliz, deixe que só por hoje as cuecas e a louça não se lavem, deixe que só por hoje a casa não se aspire, as camas não se arrumem, deixa rolar Maria, deixa rolar, você mesma não falava “Deixa a vida me levar, vida leva eu…”? E, para que lado você vai deixar ou está deixando a vida te levar?

Olhou-me com olhos de vidro, as lágrimas contidas não conseguiam ser escondidas, eu não acreditava no que estava vendo, ela provavelmente não acreditava que alguém de vinte e poucos anos a menos pudesse lhe ensinar algo, mas lá estava ela, estática, me olhando e eu olhando-a como se estivéssemos nos reconhecendo, ficamos assim alguns segundos e ela perguntou; e você Ana, o que você quer comigo?

Eu não demorei em lhe responder; eu quero que você volte a ser a Ana Maria que eu sempre conheci, essa mistura de eu mesma com você. Porque você guardou a Ana? Quais são seus medos? Encare-os, chegou a hora de voltar a ser o que você sempre foi, chegou a hora de voltar a ser a Ana Maria.

Neste momento Ana e Maria já não sabiam mais quem era quem, neste momento a fusão Ana+ Maria, Maria+Ana acontecia de forma intensa e natural, afinal, Ana Maria, Maria e Ana eram uma só coisa, eram uma só pessoa, refletida no espelho.  O que você está fazendo com a sua Ana para que ela não morra, não mofe, não sofra? Existe dentro de nós uma Ana, a idade de cada uma delas somos nós que estabelecemos, o que diz o documento, ah! O que diz o documento é só um número, o que vale é o que está dentro de nós, é como vamos manter viva essa Ana sem deixarmos de ser Maria.

Olhe-se no espelho, procure sua Ana e chame-a de volta para sua vida, com certeza você ficará mais leve, mais brilhante e disposta, com certeza você vai colocar o moletom para ir caminhando comprar legumes e vai ter coagem de subir as escadas, com certeza você vai rir mais e reclamar menos, das cuecas, dos Nuggets, das rugas e da flacidez, com certeza você vai entender que o tempo passou, mas que quem habita em nós está vivo e querendo viver ainda mais e mais.

Vamos nos permitir, vamos ser mais Anas, vamos ser mais Ana Maria e esquecer que ontem fomos um e hoje somos outro, vamos fazer um chá, nos questionar, ouvir um disco, acender um incenso, vamos deixar que as cuecas e louças não se lavem, vamos deitar no sofá para ler um livro e deixar que o tempo passe sem culpa, sem peso, vamos nos dar um tempo para nós, para fazermos aquilo que nos faz bem, para sermos mais de nós mesmos e menos dos outros, vamos fazer aquilo que nos faz sermos mais Anas, aquilo que nos faz brilhar, sorrir, pois só sendo mais Ana é que seremos melhores Marias.

Olhe-se no espelho, reconheça-se, não tenha medo.

 

[colored_box color=”eg. blue, green, grey, red, yellow”]

unnamed1-600x404

 

Dafne Araceli Román é argentina, escritora, professora de Espanhol e Português com formação em Letras. [/colored_box]

 

 

Acompanhe o Almanaque Urupês também na nossa página do facebook e twitter

 

almanaqueurupes