Álbum de família
Quando eu me instalei em São Paulo e comecei minha carreira de compositor, Walter Silva, o famoso DJ Pica Pau, era o cara que me orientava. Sem ele a história teria sido bem mais difícil porque, além de super bem relacionado e capacitado para abrir muitas portas, ele era um desses camaradas completamente apaixonados por música.
Gostava de descobrir gente nova. Havia levantado a carreira do Chico Buarque e fora ele quem colocara a Ellis no olho do furacão. Sem contar os espetáculos que produzia nas universidades e no Teatro Paramount, que ditavam tendências. O Walter foi fundamental para a história recente da MPB.
Não demorou nem um mês e eu já circulava no melhor espaço musical da cidade com certa desenvoltura, afinal eu era uma nova aposta do grande lançador de talentos. Ele articulou para que eu fosse contratado primeiro pela recém inaugurada TV Bandeirantes que produzia musicais sofisticados e depois pela TV Tupi, sem dúvida a grande rede daquele momento.
Walter gostava da minha maneira interiorana de compor e adorava o fato de eu ter vindo de Taubaté completamente cru e enrolado numa espécie de timidez bem característica daqueles que precisam conhecer melhor o território onde terão que pisar dali pra frente. Por sua influência, os jornalistas começaram a falar de mim como o rapaz que viera de Taubaté em busca do sonho de ser cantor.
Um dia o Walter chegou com uma conversa sobre um tema musical para ser composto. Imaginava como seria “cantar” a sensação de se abrir um álbum de retratos e passear por todas as lembranças fotográficas de uma vida. Os álbuns eram muito mais difíceis de serem montados porque não havia ainda a facilidade das câmeras digitais. E era uma coisa cara porque envolvia filmes, revelações e tempo, muito tempo, entre o click e a foto final estampada no papel. E havia também a imagem muda e silenciosa. Imagens inertes e mortas, zumbis viajando pela eternidade.
As fotos, sob esse aspecto, são assustadoras. Vendo uma de meu avô jovem, pensei com que direito a máquina capturou aquele sorriso calmo que está ali até hoje, mesmo que seu dono já tenha virado o pó da terra? Teremos o direito de capturar a espontaneidade de uma pose e perpetuá-la? A pose é um fragmento que não pode contar uma vida. A pose é só um gesto que fica.
O Walter queria uma música que falasse disso, um álbum de família sonoro; e me pediu que compusesse a canção.
Talvez nem fosse eu o autor mais indicado para a missão porque aos 22 anos não tinha muita coisa para lembrar.
Além disso, os álbuns de fotos que me diziam respeito nem haviam sido montados por mim; eram objetos familiares que habitavam os guardados de meus pais. Quem sabe um compositor das antigas fosse mais indicado para missão. Mas esse não era um problema meu e eu fui correndo para casa de meu Tio Osmar, na rua Alves Guimarães onde eu morava em Pinheiros, e parti para o ataque.
A encomenda feita a mim trazia uma informação importante para quem como eu começava a trilhar a carreira de compositor: a canção, qualquer canção, ao ser criada, possibilita ao autor ser o que ele bem entender. Não precisamos ser um velho para falarmos de coisas do passado. O autor tem a idade que quiser e pode inventar mundos sem limites. Os próprios equívocos que às vezes a imaturidade nos impõem, soam como licenças poéticas desde que verso seja bom e convincente.
Assim criei Álbum de Família, apoiando-me logicamente nas minhas recordações taubateanas. Acabada a composição, fui correndo mostrá-la ao Walter que chorou muito ao ouvi-la; durante anos Álbum de Família foi uma espécie de carro chefe do meu repertório. Muita gente ficava admirada como um rapaz de 22 anos conseguia falar assim com tanta poesia do tempo de uma vida. Acontece que, analisando bem a letra, reparo que as memórias descritas são profundamente juvenis e que um observador atento, se quiser, vai sacar a generosidade da poesia que se articula de maneira gentil para que eu não tenha necessariamente que ser um veterano para falar sobre um assunto tão devastador como o tempo da vida. Quer tentar?
Álbum de família
No álbum de família
Vejo a vida e me espanto
Pois não compreendo
Porque ela correu tanto
Na manhã da vida
Tinha a alma ensolarada
Tudo era um querer
De querer tudo
E sem querer
Não querer nada
Triste do retrato
Que saudoso rememora
Minha ingênua farda
De soldado da escola
Hoje já não tem
Aquele mesmo resplendor
Pois passou o tempo
E ele também perdeu a cor
Ah, doce lembrança
Que me invade sem receio
Ouço a gritaria
Da hora do recreio
As meninas anjos
A trocar por suas prendas
Um beijo no Zé Gordo
Entretido com a merenda
Ana sabe tudo
Era a minha namorada
E eu por minha vez
Era um perito em saber nada
Dura a taboada
Com seu complicado enredo
Nela eu aprendi
Como se faz contas nos dedos
Nove vezes nove
Quase que me bota louco
E hoje o resultado
Deus do céu
Vale tão pouco
Nada mais existe
Do menino aprendiz
Que levou a sério
O que todo mundo diz
Desbotou com o retrato
Aquela alma ensolarada
Tudo que é querer se foi
Ficou o querer nada
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Renato Teixeira
Texto Publicado Originalmente no Jornal Contato